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020613 A Grande Entrevista ^_^ – Conversas com Guilherme da Luz


[Ao contrário do que aconteceu noutros casos, resolvi não dividir a entrevista em bocados pequenos, porque isso iria quebrar a lógica interna do texto, sempre cheio de recuos e interligações a coisas que já tinham sido ditas. Em todo o caso, para manter a estrutura visível e para tornar mais fácil encontrar uma passagem no texto em leituras posteriores, incluí o pequeno índice que se segue e introduzi frases ao longo do texto que vão marcando as diferentes temáticas em foco. No entanto deixo o aviso: essas temáticas não estão bem demarcadas, só para dar dois exemplos: quer o Taoismo, quer a hierarquia são temas debatidos de forma recorrente ao longo de várias partes do texto...]

Símbolo do Kung Fu TO'A - O Homem Pássaro

Índice temático

  1. A Génese do Kung Fu na China: Budismo, Taoismo e Confucionismo
  2. O Kung Fu como raiz de outras artes marciais
  3. Taoismo e Kung Fu
  4. O Tao do Tao
  5. Voltando à Génese do Kung Fu na China
  6. A Origem do Kung Fu TO'A na Pérsia
  7. A Introdução do Kung Fu To'a em Portugal
  8. Do Kung Fu TO'A ao Kung Fu TO'A – Flor de Lótus
  9. Símbolos
  10. Perguntas profundas – respostas profundas
  11. Um Kung Fu da transformação
  12. Pisar pegadas não transforma ninguém
  13. Interlúdio – O fim do mundo
  14. De volta ao Kung Fu To'a em Portugal
  15. O papel do Kung Fu na sociedade de hoje
  16. O Sétimo Chacra
  17. Como é que o exercício físico conduz à espiritualidade?
  18. Kung Fu, música e não-reacção
  19. Quando estamos de olhos fechados, tudo pode ser o nosso inimigo

 


 

[A Génese do Kung Fu na China: Budismo, Taoismo e Confucionismo]

Pedro — O Kung Fu To’a – Flor de Lótus é uma variante do Kung Fu To’a original?

Guilherme — Sim, ou melhor, é uma evolução do Kung Fu To'a. Mas isso é a parte final, o início é assim: O Kung Fu vem da China, com influências da Índia, em termos espirituais, em termos de génese. Segundo a tradição foi no templo de Shaolim que foi criado o Kung Fu externo, aquele mais vistoso, mais físico. Quem dinamizou o templo de Shaolim foi um monge indiano chamado Bodhidharma, que trouxe os movimentos e o ensinamento espiritual do Budismo Zen da Índia para a China, e é esse templo de Shaolim que se considera ter sido o berço do Kung Fu externo. Também se conta que esse monge, quando chegou ao templo, encontrou os outros monges muito debilitados fisicamente; então ele criou uns movimentos para a saúde e para a cultura física baseado nos animais. E depois, com o passar do tempo isso foi evoluindo e tornou-se numa arte marcial, uma vez que eles também eram muito assaltados naquela época e havia outras dificuldades. Isso é uma das origens do Kung Fu, a origem Budista.

Depois também há outra origem que é a origem Taoista. Enquanto que o Budismo Zen é uma filosofia originária da Índia – embora depois o Budismo tenha deixado de estar tanto na Índia ficando mais forte no extremo asiático – o Taoismo não. É uma filosofia de origem chinesa, e já deves saber que preconiza o encontro do homem com a sua verdadeira natureza, a harmonia do homem com a sua natureza, e a sua natureza no fundo é o seu Tao, que se pode traduzir pelo seu caminho, a sua vocação, o seu percurso. Um percurso a que ele por um lado está destinado e por outro lado também é onde encontra prazer, onde ele poderá ser ele próprio. O estar destinado não é de tipo fatídico, mas no sentido em que é aí que ele será inteiramente livre e feliz...

P: O seu lugar natural...

G: Sim, o seu lugar natural, exactamente. E também havia Kung Fus inspirados nessa filosofia (por exemplo Tai Chi, Hsing-I e Pa-Kua). Estes são Kung Fus chamados mais internos, que cultivam a energia interior. Enquanto os outros, do templo de Shaolim, cultivam, pelo menos no início, a energia exterior (o físico), os Taoistas cultivam a energia basicamente interior. É um Kung Fu mais maduro...

P: Mas esse Kung Fu também apareceu depois da passagem de Bodhidharma no templo de Shaolim?

G: Conta-se que já existia. Aliás, o Kung Fu tem várias origens. A origem de Shaolim (Budista), a origem Taoista, a do exército (Confucionista), e também dos clãs, famílias, bandidos, vagabundos, etc, que também desenvolveram o Kung Fu. Por isso, quando se diz ‘origem indiana’, é uma origem quase espiritual, porque na Índia não existe nada como o Kung Fu ou semelhante. Existe uma arte marcial que também é assim muito serpenteante, mas não é parecida com o Kung Fu.

P: Então quer dizer que o estilo que o Bodhidharma introduziu no templo de Shaolim provavelmente não é o Kung Fu tal como veio a ser desenvolvido pelos monges que lá estavam. Digamos que eles pegaram na semente e depois a transformaram numa coisa completamente diferente.

G: Sim, ou ele próprio já fez uma transformação. Essas coisas historicamente não estão bem claras. Mas é claro que era, ou se tornou, diferente do que existia na Índia.

[O Kung Fu como raiz de outras artes marciais]

P: Já agora, só uma dúvida, li num livro do Bruce Lee que o Kung Fu, ou Gung Fu, era a raiz de todas as artes marciais. Qual é a relação entre o Kung Fu e as outras artes marciais é mesmo tipo de raiz para os ramos?

G: É. Porque foi exportada da China para todos esses sítios. Se pegares em cada uma das outras artes marciais do Extremo Oriente, todas elas têm origem no Kung Fu, com elementos próprios nativos. A história do karaté é típica. Foi criada em Okinawa, que na altura não era do Japão. Okinawa encontrava-se numa situação à parte, e conta-se que havia situações de conflito nessa ilha, entre os senhores e os servos, e os peritos chineses foram lá ajudar...

P: A revoltarem-se...

G: A revoltarem-se, por assim dizer, uma vez que as armas eram proibidas. Encurtando é assim: acontece que o Kung Fu era uma arte muito sofisticada, e para, em pouco tempo, ajudar as pessoas a lutar, têm que fazer da maneira como faz o Karaté, que é um bocado contraído, é um bocado rígido, directo e guerreiro, pronto... não houve tempo para aquele refinamento.

P: Então é uma forma simplificada de Kung Fu?

G: É, não tenho dúvidas nenhumas em falar nisso, embora outras pessoas achem outras coisas [para versões alternativas ver aqui]. Mas estamos a falar da forma e do ponto de partida [dessas artes], depois na prática depende sempre do uso que as pessoas lhe dão.

P: Sim, e do desenvolvimento que fazem, porque hoje em dia o que nós temos são desenvolvimentos de artes marciais que podem ser muito diferentes das origens.

G: Sim, mas há a imagem típica, o Karaté é sempre aquilo, não evolui mais que aquilo, o que evolui são as maneiras de o fazer, porque o Karaté é sempre assim [directo, rígido, guerreiro, etc]...

P: Mas por exemplo aquele tipo, o Ed Parker...

G: Ah sim, esse sim... mas esse já utilizava o Kempo... E o Taewkwondo é a mesma coisa, foi influenciado pelo Karaté. Depois no sudoeste asiático temos o Pentjak Silat influenciado pelo Kung Fu, outro tipo de Kung Fu da Indonésia... Só que o que é giro é que o Kung Fu sempre foi uma arte em transformação. Ou seja, perguntas a um chinês de onde é que vem o Kung Fu dele e ele diz-te que vem do templo de Shaolim. Só que eles são completamente diferentes uns dos outros. Sempre foi uma imagem típica do Kung Fu ir-se transformando, as pessoas irem-se adaptando. Isto tem a ver com a mentalidade chinesa, os chineses usam as técnicas [para se evidenciarem]. Por exemplo se elas são apanhadas por outras pessoas deixam de dar valor àquilo. Têm sempre um grande secretismo em relação àquilo que sabem; e então largam coisas e vão buscar outras coisas, e neste processo todo perderam-se muitas coisas e redescobriram-se muitas coisas, e é muito giro. O Kung Fu nesse aspecto é vivo, está sempre a mudar.

[Taoismo e Kung Fu]

P: Então qual é que dirias que é a imagem típica desse Kung Fu tradicional?

G: Bem, o Kung Fu tradicional de Shaolim mantém-se sempre, só que a tradição vai também evoluindo com o passar do tempo. É como uma tese, um padrão: confronta-se com a realidade, com situações diversas. Depois evolui para a sua antítese, depois as pessoas fazem uma síntese, e com o passar do tempo a síntese transforma-se em tese novamente. De maneira que o Kung Fu tradicional de agora não é o Kung Fu tradicional de há muitos anos. Se bem que a imagem típica do Kung Fu tradicional depende muito dos sítios onde ele era treinado. Fosse num templo, na tropa, num clã...

Agora, há três filosofias básicas na China, que são o Confucionismo, o Budismo e o Taoismo e todas elas têm uma maneira própria de viver e relacionar-se com o Kung Fu. O Budismo, basicamente, preconiza a rejeição do corpo, a rejeição do que vem através dos sentidos, na linha de que ‘nós não somos o corpo’, isso tudo. Então havia privações muito duras para entrar para lá, aquelas imagens típicas do templo de Shaolim em que as pessoas ficam sem comer e sem beber vários dias à porta e depois é que entravam. São provas muito duras de força de vontade, de mostrar que nós não somos o corpo.

Mas o grosso do Kung Fu, a maneira de entrar para o grosso do Kung Fu, seja ele qual for, é o Confucionismo. E o Confucionismo rege-se muito por códigos de obediência...

P: É o social, não é...

G: É, o social. Muitos códigos de obediência, hierarquias muito fortes baseadas na obediência, nas relações de subordinação em relação aos mais velhos e à tradição, etc. Mas uma coisa mesmo muito forte. Aliás, toda a sociedade chinesa é basicamente Confucionista, a maneira como eles vivem, e se relacionam com os mais velhos, o culto da obediência, o peso da tradição, do estado e das hierarquias, etc, mostram isso.

E depois há o Taoismo, que é uma coisa um bocado estranha no nosso tempo. Porque o Taoismo, segundo a definição do Tao, não pode ser definido por um padrão, uma maneira. E acontece que há muitas maneiras de explanar o Tao e há muitas pessoas a falar em nome do Tao e a construir escolas e situações em nome do Tao, e depois perdem o Tao. Porque a primeira frase do Tao é que o Tao que pode ser definido ou nomeado não é o verdadeiro Tao (ver o texto de Lao-Tzu em inglês). Então as escolas Taoistas às vezes perdem-se um bocado em teorias de órbitas de energia e de circulação de energia pelo corpo, e de longevidade, muito, mas mesmo muito intrincadas, quando ‘o mais simples é que é certo’ – como o Chuang Tzu dizia “easy is right”. E às vezes eles entram em coisas muito complexas, onde cada vez se perdem mais. Estás a ver, para atingir a longevidade, para atingir a naturalidade, cada vez se perdem mais, a natureza e a longevidade e...

[O Tao do Tao]

P: Mas também é um bocado difícil, não é? Atingir esse equilíbrio. Porque por um lado não é simplesmente estar à vontade. O Tao não é simplesmente estar à vontade, exige uma certa ciência. Mas essa ciência não pode ser encerrada digamos numa teoria, num conceito, numa estrutura. E isso torna muito difícil a posição da pessoa. No fundo como é que se evolui para o Tao? Como é que se alcança esse estado?

G: É como se evolui em todo o lado: é sempre aquela história típica do Zen de que antes a montanha era montanha, o rio era rio. Isto antes de entrar no conhecimento ou seja, quando se é criança. Depois quando já se começa a estudar, a montanha já não é montanha, o rio já não é rio – e o rio é H2O e a montanha é XYZ. Isto acontece quando perdemos a relação natural que tínhamos com as coisas e passamos a ter uma relação mental. Até que mais tarde há que largar tudo isso e voltar outra vez a uma relação natural. Claro que não é voltar atrás, é... voltar à frente. Entendes o que eu quero dizer com voltar à frente? Ou seja: saímos de nós para voltarmos a nós, não como estávamos no início, mas para voltarmos a nós muito mais ricos. Ou seja todo este processo, do conhecimento humano, e não só do Kung Fu, é isto. É normal uma pessoa sair de si própria para conhecer, e as crianças querem conhecer, e depois... há que largar o conhecimento e voltar a ter outra vez a relação natural. Largar o conhecimento, porque ele fica sempre como um intermediário, um entrave, na relação directa entre nós e as coisas. E isso é tudo.

Agora o que o Tao diz – e isto é um caminho que nunca foi percorrido em grande quantidade – é que esse processo podia ser muito natural e nada de penoso como o processo de evolução é considerado. E não é o que acontece. Em todo o lado existem sempre teorias muito fortes, obediências muito fortes, uma pessoa não é nada, uma pessoa tem de aprender, etc, é uma coisa muito, muito penosa. Quando os Taoistas olham vêem que já está tudo na pessoa, a pessoa só tem é que redescobrir. É claro que poderá ter de reaprender aqui e ali, mas que esse processo seja natural. E qual é o processo natural? É respeitar o interesse das pessoas. Ou seja, respeitar o caminho, a vocação, as preferências das pessoas. Quando as pessoas perguntam coisas, perguntam coisas que têm a ver consigo, e só se deve responder aquilo que elas perguntam. Claro que [se deve] estimulá-las a percorrer o seu caminho, e responder àquilo que elas perguntam, e não encher com respostas as pessoas. Com coisas que elas não precisam.

P: Eu acho que em todas as religiões, incluindo o Budismo e o Confucionismo, se nega um bocado o eu, de uma forma um bocado radical. No Confucionismo é em nome da sociedade, e aqui [no nosso país] também com o patriotismo – é a mesma coisa com palavras diferentes – e na religião é a mesma coisa. Também se nega o eu em nome de outra coisa qualquer. A obediência a Deus, a sensação de ser missionário, de largar tudo, etc, o que tem o seu quê de verdade...

G: Claro, tem a sua função...

P: Porque também existe uma coisa que é estarmos tão agarrados a nós que não conseguimos ver aquilo que nos rodeia.

G: Pois, é o caso das crianças. Ainda vão ter de sair fora delas.

P: Só que é esse equilíbrio que não se encontra... um equilíbrio que é por um lado estar dentro e por outro estar fora.

G: Pois. Podia ser pior, podia ser melhor. Sem dúvida que já foi muito pior. Agora existem meios e conhecimentos acessíveis às pessoas. O que eu acho é que podia ser melhor. E, se fosse melhor, muitos problemas desapareceriam. Porque a maior parte dos problemas advêm daí, de as pessoas não estarem no seu caminho. Quando as pessoas estão no seu caminho ficam contentes com o sol que nasce, com as pequenas coisinhas, vivem no mundo psíquico. Ou seja, uma coisa rende imenso, uma pessoa é satisfeita pelas pequenas coisinhas, quando está no seu caminho, e é satisfeita mesmo. Fora isso, uma pessoa está sempre a sentir falta de qualquer coisa, falta sempre qualquer coisa. Por mais que tenha, por mais que tenha, mesmo a coisa mais difícil, sente sempre falta de qualquer coisa. E por isso é muito importante essa questão do Tao.

P: Isso faz-me lembrar uma coisa. É que às vezes podemos ter montes e montes de coisas, e montes de capacidades de todo o tipo, monetárias, pessoas, etc, mas se não era aquele caminho que nós escolhemos, nem temos opção de escolher nada, é como se estivermos a viver uma vida emprestada que não nos serve para nada. Quer dizer, é uma coisa completamente inútil.

G: É como diz o Rajneesh, podemos ter muito dinheiro e sermos uns beggars. E há pessoas que não têm muito mas como estão no seu caminho, aonde elas vão sentem-se mesmo, são mesmo, uns Imperadores.

P: Estão a realizar aquilo que querem fazer...

G: É. O Tao fala nisso, é onde o Budismo está... Depois os chineses fazem uma amálgama muito grande das coisas. O Budismo ligou-se muito com o Taoismo, e o Taoismo com o Budismo, e isso é muito giro. É mais do que tolerância, os chineses fizeram muito mais do que tolerância. O Budismo entrou na China, já lá havia o Taoismo, e o Taoismo não foi contra o Budismo, pelo contrário, fizeram uma amálgama de muita coisa. O Budismo Zen é uma amálgama do Budismo e do Taoismo, e isso é muito giro, muito giro. Essa amálgama, foi feita com sentido prático. Não foi tolerância, a tolerância nunca é prática, a tolerância é sempre «eu para viver tenho de tolerar o outro».

P: É quase a indiferença...

G: Sim. A tolerância tem a ver com a não-aceitação, com um sentido de superioridade em relação ao outro. «Eu tolero.» Quem sou eu para tolerar? Tudo tem a sua função neste mundo. E eles mais do que a tolerância, foram a um sentido prático das situações. Porque procuraram e foram buscar o que fazia sentido num e noutro e usaram. E isso é muito giro.

P: Há uma interpenetração, é como se houvesse dois pilares e se fizesse uma ponte entre eles.

G: Exactamente. E isso é muito, muito giro.

P: Complementaridade.

G: Exactamente. Complementaridade. Agora, o Kung Fu tradicional mais difundido tem como base os códigos mais Confucionistas. Porque o Confucionismo é mais acessível. O Budismo é um bocado sair fora, a imagem do monge, que desaparece, e o Taoismo é muito difícil de se perceber, nunca foi muito praticado. Especialmente porque o Taoismo é das últimas conversas que se pode ter antes da evolução total. Ou seja, há muitas maneiras de explanar a evolução, a metafísica, o que se lhe queira chamar, a evolução do ser, todas essas coisas, há muitas maneiras de explanar... consoante o grau de evolução em que as pessoas estão. E o Taoismo é uma maneira de explanar, não só pela forma mas também pelo conteúdo. A forma é muito simples e o conteúdo é uma coisa muito evoluída, tem a ver com o sétimo chacra, com a integração do homem no cosmos. Para além da integração do homem na sociedade, para além da integração do homem com os outros, para além da integração com a mente... é o cósmico. E isso é das últimas coisas de que se pode falar. E como a maioria das pessoas neste mundo são mais básicas,

P: Estão a trabalhar outros níveis...

G: Estão a trabalhar outros níveis, e os níveis mais básicos não quer dizer que sejam menos..., são os que levam mais pessoas, o Taoismo foi sempre uma escolha de poucos...

P: Quando dizes mais básico não quer dizer que seja pior...

G: Não, não, é o que é. Se eles fossem obrigados a seguir o Taoismo não evoluíam, no outro sítio é que evoluem. Cada um tem que encontrar sítio certo para evoluir, depois muda, depois reforma... Cada religião é como se fosse uma casa, uma casa de abrigo. E há casas e casas. Há casas que são casinhas, que é para a pessoa se sentir muito aconchegada, há casarões, e o Tao é quase... a casa deve ser o cosmos. E isso é muito complicado para quem está desamparado neste mundo dizer «mas isto é a tua casa!» É muito complicado, a pessoa tem que ir para uma casinha que lhe dê conforto, depois de se fartar dessa casa, ir para uma casa maior, e uma casa maior..., e de cada vez sentir que a casa é limitada e então, um belo dia, é que sente essa coisa, a sua integração com o cosmos.

[Voltando à Génese do Kung Fu na China]

De modo que a maneira Taoista é um bocado mais completa mas mais difícil de explanar e de a ver como maneira no Kung Fu. O que existe mais são os códigos tipicamente Confucionistas.

Tradicionalmente trabalhava-se o Kung Fu do templo de Shaolim, em que começar o Kung Fu é como começar a vida nova. Tem de se saber pôr em pé, as chamadas posições. Pôr em pé é como uma árvore, criar raízes, para subir para o céu. E não vergar. Só vergar se muito, muito empurrado, só em último caso. E, se tiver de ser, tem de vergar mesmo, porque se não vergar parte. Depois a partir daí vêm os deslocamentos, como se fosse uma árvore a deslocar-se. É muito inspirado nos animais, os cinco animais de Shaolim. Isso é a base – que é o tigre, o leopardo, a cegonha, o dragão e a serpente. E depois, a partir daí, havia uma evolução grande, em que havia especializações. Vieram outros Kung Fus do templo de Shaolim, que dizem que são de Shaolim, mas que já não pertencem originalmente ao Kung Fu de Shaolim, que têm a base de Shaolim mas que já são uma evolução. Tal como o Kung Fu de louva-a-deus, por exemplo, inspirado naquele insecto e desenvolvido por um monge já depois do tempo de Shaolim. E pronto, basicamente isso é o panorama do Kung Fu na China.

Até chegarmos ao aparecimento do Kung Fu To’a, em que...

P: Mas antes disso, hoje em dia há uma panóplia de estilos de Kung Fu não é?

G: Há mais de 300 estilos de Kung Fu, e variantes nunca mais acabam. O To’a é um estilo e nós já somos uma variante do To’a. Aliás, o To’a que veio para cá, já era quase uma variante. O nosso [toa à for de lótus] podemos dizer que é uma variante porque evoluiu mesmo. O outro não, o outro ainda estava em crescimento...

Há uma grande alteração no Kung Fu. No Kung Fu sempre houve um bocadinho de secretismo, aliás, o funcionamento do Kung Fu baseava-se muito no secretismo. O Kung Fu foi criado pelos chineses que não eram muito fortes fisicamente. A grande estratégia era ir ao calcanhar de Aquiles do adversário. Quando baseado no Tao, ou no Zen, procurava-se não lutar. Só que o adversário forçava tanto a situação que se conseguia, não fazer frente, mas "ir por trás". Segundo o Tao, quanto maior é a força pela frente maior é fraqueza por outro lado, então a grande força do Kung Fu é exactamente não fazer frente e deixar que a frente se concentre mais para haver uma maior fraqueza por outro lado. E então, na altura certa, resolve-se a situação pelo ponto fraco. E há muitas maneiras de fazer isso.

P: Isso é especificamente da versão Tao?

G: É do Tao e do Zen, no fundo, na prática vai tudo dar ao mesmo. O Tao é capaz de ser muito mais transcendental, muito mais..., é deste mundo e do outro. Eu gosto muito do Tao por causa disso. O Zen, tal como outras formas de Budismo, é quase de outro mundo, não está neste mundo. O Confucionismo é muito este, as regras, a sociedade, os códigos morais, as coisas todas muito a sério. E o Tao é a síntese dos dois. Por isso é que é muito mais complexo para explanar.

Agora, estávamos a explicar porque é que o Kung Fu tinha tanto secretismo, tinha a ver com a sociedade chinesa, o próprio caracter, como se fosse o centro do mundo, a muralha chinesa... sempre foi um povo muito fechado. Depois, o que aconteceu é que houve uma grande alteração no Kung Fu com a revolução cultural, com a revolução chinesa...

P: Do Mao Tse-Tung?

G: Sim. Que foi exactamente uma revolução verdadeira, porque foi alterado completamente tudo aquilo [de um extremo para o outro extremo]. Porque antigamente era como se se vivesse num reino feudal, com os senhores, os protegidos, a gente que trabalhava. Tudo muito baseado nas tradições, nas superstições, e o chamado Taoismo ritualístico, que é o Taoismo instituído, que eu não considero que seja Taoismo...

P: Porque é que era ritualístico?

G: Ritualístico porque eles faziam trabalhos de exorcismos, funerais...

P: Era uma coisa mais folk? (risos)

G: Era, era uma coisa mais para o povo, exactamente... Há esse Taoismo.

Pronto, e tudo isso foi banido com a revolução comunista, onde se passou a dizer que a religião, seguindo [fumando ;)] Marx, é o ópio do povo. Então, o que aconteceu com este processo todo é que muitos destes mestres chineses fugiram da China, para Taiwan, Hong Kong, Macau, Sudeste Asiático, Malásia, etc, etc, e outros tiveram que se esconder porque tudo o que estivesse relacionado com misticismo, com crenças e transcendental era mesmo perseguido na China nessa altura. E então o que aconteceu foi que depois mais tarde eles viram que aquilo era bom para o povo, aqueles movimentos, viram também que os estrangeiros gostavam muito daquilo e criram aqui que se chama Wushu, a arte de guerra nacional. E o Wushu não é nada senão o Kung Fu sem o conteúdo esotérico. Que são excelentes, mas que são mais equipas de ginástica do que outra coisa. Fazem torneios por todo o lado, e são excelentes bailarinos, com movimentos muito rápidos; mas não tinha muito da transformação que o Kung Fu preconiza, a verdadeira transformação lá do fundo. É mais um teatro... Excepcional, mas mais nada.

[A Origem do Kung Fu TO'A na Pérsia]

G: Então era assim que estava a situação até à criação do Kung Fu To’a que foi no final dos anos 60. Agora é assim, aquilo que eu te vou dizer acerca do Kung Fu To’a, é uma síntese de tudo o que eu li (revistas – karate francesa, inside Kung Fu, internet, etc), de tudo o que eu ouvi, baseado em muitas fontes, que incluem fontes do próprio Kung Fu To’a – desde um braço direito do Mirzaii, a praticantes do nosso Kung Fu que treinaram na Suíça e no Canadá – e pessoas que não eram do Kung Fu To’a, como um empregado da embaixada iraniana em Portugal, ou um jornalista iraniano de artes marciais, que andava por todo o mundo e que também me deu indicações sobre o Kung Fu To'a. De maneira que tudo o que eu te vou falar vem de muitas fontes e resulta da síntese dessas fontes todas. E vou dizer a título pessoal, baseado nessas informações; não vou inventar mas também não vou fazer uma soma disso tudo. Então é assim:

O Kung Fu To’a foi criado pelo Ibrahim Mirzaii que, segundo parece, era uma pessoa extraordinária, em termos de capacidades, e um grande visionário. Tão visionário que, conta-se, o Kung Fu To’a foi criado, não por aprender estas e aquelas técnicas algures e ele fazer uma síntese disso, mas sim ele apreender a essência do Kung Fu algures e criar. Ou seja, não é uma evolução contínua como costuma haver nos Kung Fus mas foi um salto descontínuo. É nesse sentido que eu acho que ele é um visionário. E que salto? O salto foi basicamente a síntese do prenúncio da era de Aquário, da união do Oriente com o Ocidente, da razão com a emoção, no fundo o conhecimento exotérico com o conhecimento esotérico, o conhecimento que tem a ver com o exterior das coisas com o conhecimento que tem a ver com o interior das coisas, com a tua relação com as coisas. Foi uma síntese que se fez algures a meio caminho entre o Oriente e o Ocidente, que era a Pérsia [hoje Irão], que na altura era um país muito ocidentalizado, mas ao mesmo tempo também muito tradicional.

Ora o Mirzaii construiu o Kung Fu To'a baseado numa coisa que era muito importante, que não era completamente nova mas que estava descurada, e que era: o centro ser o homem. Porque todos os Kung Fus eram em função da pessoa, mas só na teoria, na prática não era assim.

P: É a questão da evolução, não é? Da evolução para outra coisa qualquer.

G: Como?

A evolução para outra coisa qualquer, no fundo estavam centrados naquilo que se queria ser, e não naquilo que se era...

G: Exactamente. Então o que acontecia é que os Kung Fus estavam muito fundados na observação dos animais, da natureza, etc, para ir ao fundo da nossa própria natureza. Acontece que as pessoas deixavam de seguir a sua natureza e em vez de se inspirarem começavam a imitar. E esse é sempre o perigo do ser humano: imitar e não inovar. Então na maior parte dos Kung Fus o homem quase deixava de ser homem para ser animal. Era um pouco caricato, muitas vezes as situações não tinham a ver com a realidade, descambavam numa coisa exótica...

P: Isso era um bocado a crítica que o Bruce Lee fazia às artes marciais...

G: Exactamente. Então o Mirzaii, que era um visionário, criou um Kung Fu que punha em primeiro plano o ser humano e o estudo do ser humano, respeitando a sua natureza e incluindo conhecimentos esotéricos e exotéricos. Os conhecimentos exotéricos, do exterior, tinham muito a ver com anatomia, fisiologia, a mecânica, a matemática, a maneira como a energia se despendia dentro do corpo, a maneira como desenvolver os vários tipos de energia em termos mecânicos, ou seja, a parte física e como tirar o maior partido da parte física. E por outro lado também os conhecimento esotéricos, que tinham a ver com a chamada energia interna (chi) que eram conhecimentos que iam da parte puramente energética à psíquica. Temos sete corpos, de modo que o primeiro é visível, mas depois há outros. Então o estudo do Kung Fu incluía muitas disciplinas, tal como hipnose, hipnoterapia...(Fotos de Mirzaii e dos seus alunos no Irão.)

P: Esses estudos levaram mais ou menos quantos anos, quantos anos é que ele esteve a estudar?

G: Nunca se sabe bem, o que é típico dos mestres, especialmente se forem pessoas que inovam. Porque parece que toda a gente, para lhes dar valor, tem de dizer, foi mestre de não sei quem, etc. Então muitas das pessoas que inovam preferem mostrar o seu valor por aquilo que fazem do que propriamente estar a dizer isso, porque [para a maior parte das pessoas] em vez de prestigiar está a descreditar. Para mim, uma pessoa que aparece com uma coisa nova que criou, significa que essa pessoa, cuidado!, é um visionário, dá saltos, não precisa de andar a pisar pegadas. Agora para muita gente, só se se estiver enterrado na tradição é que se tem valor. Agora o Mirzaii, segundo consta, esteve a aprender na China e a parte espiritual no Industão, a Índia. Agora quanto tempo ele levou não se sabe, é secundário.

Segundo consta ele foi mandado pelo Xá para aprender Kung Fu para depois treinar as tropas, e acontece que depois, quando ele aprendeu Kung Fu deixou de querer ensinar Kung Fu às tropas. Nessa altura começou a careira dele e a carreira dele tem muitos aspectos.

Eu só vou focar o que interessa mesmo, aquilo que é criativo, aquilo que é mais para a frente. Porque é assim, toda a gente tem a sua personalidade mas a personalidade não interessa, o que interessa é a individualidade. Ninguém é perfeito, e as desilusões de muita gente com ele, acerca do percurso dele, de ele ter sido candidato, meter-se na vida política do Irão, a relação dele com os alunos e várias outras coisas, isso não me interessa, isso tem a ver com a personalidade. O que interessa mais é a individualidade dele, aquilo que ele era e aquilo que ele fez de criativo e de inovação, isso é que é o mais importante, e é nisso que eu me vou centrar. Porque de resto, não interessa.

Não há ninguém que não se exponha. Ele expôs-se imenso, e não há ninguém que, ao expôr-se, não mostre montes de coisas que não agradem a gregos e a troianos. E isso é o menos interessante. Também tem de se enquadrar com a época e com as situações. Agora, sei que ele tinha um poder muito grande, magnético, perante as pessoas. E ele captava as pessoas com uma força danada e graças a isso fez milhares e milhares, centenas de milhares, de praticantes no Irão. Aquilo foi uma coisa... todos os iranianos conhecem o Mirzaii, é uma pessoa extraordinária.

Ele era muito bom fisicamente. Fazia coisas que só algumas pessoas que nascem com certas capacidades físicas conseguem fazer. Porque é mesmo assim, já nem é uma questão de treinar. Há corpos que conseguem fazer umas coisas mas que possivelmente já não conseguem fazer outras. E em termos de flexibilidade e pontapés e coisas assim ele era extraordinário.

O Mirzaii teve muito sucesso e criou uma universidade que preconizava o desenvolvimento integral do ser humano: a Universidade do Kung Fu Insha To’a, porque ele sempre disse que o Kung Fu era «o caminho da inteligência», era o que o Shahram sempre dizia. E, tipicamente, o que acontecia nessa universidade era: acordar de manhã, fazer condição física, treinar técnicas básicas e depois eram estudos o dia inteiro. Com disciplinas esotéricas e exotéricas. Tal como numerologia, fisiologia, anatomia, hipnose, acupunctura, uma data de disciplinas. E depois ao final do dia é que se ia treinar outra vez o Kung Fu, agora mais técnico. O Kung Fu To'a sempre foi muito técnico, com muita perfeição técnica, muita... até demais – e isso é uma coisa boa e é uma coisa má, como tudo, porque se uma pessoa vai demasiado ao perfeccionismo... – e depois de treinar a técnica, ao princípio da noite ainda havia as leituras do Mirzaii...

P: Tipo ensinamentos ou assim?

G: Exacto. Tipo leituras de sutras, comentários, etc. De maneira que era muito intenso, mesmo muito intenso, essa é a imagem típica do To'a.

P: E isso durou mais ou menos quanto tempo?

G: Segundo consta isso foi durante os anos 70, mas não durou muito tempo, porque a partir de 79 começou uma confusão no Irão com ele. E, principalmente com o choque com os islâmicos, quando houve uma espécie de legalização, de enquadramento, do que era o Kung Fu. Eles diziam (o Governo) que o Kung Fu era um desporto, e o Mirzaii dizia que não, que o Kung Fu era o caminho da inteligência. E num sítio onde o Corão é que é a palavra, isso iria criar, e criou, montes de confusão. E a partir de 79-80 começou muita gente a sair do Irão, inclusivamente o próprio Mirzaii. Portanto, se foi criado no final dos anos 60, entrou em força nos anos 70, não durou mais de 10 anos, ou menos até. Mas isso aí não tenho a certeza.

No Irão o Kung Fu To'a era muito exigente. Para ter o shawl (faixa) de Sabs, que era a última fase, o teste era extremamente exigente. A última coisa era ficar 24 horas em zenai e ao fim das 24 horas fazer as sete fases seguidas, com apenas um intervalozinho entre cada uma. Bem como responder a questões daquelas disciplinas. Mas era muito engraçado porque no final havia a tese, cada pessoa escrevia a sua tese, era muito giro.

P: E essas teses não estão disponíveis?

G: Eu não sei, não sei porque...

P: Era interessante tentar reconstruir um bocado aquilo que sobrou, os frutos que sobraram dessa escola...

G: Mas é isso que nós fazemos aqui. Também vai haver a tese, e às vezes quando falo disso pergunto...

P: Tu tens a sétima fase?

G: Eu sou um caso à parte, porque eu não estou ligado com os outros To'a. Mas depois já vamos falar sobre o nosso. Mas na nossa concepção, há gente que já tem quase a sexta fase completa e eu, de vez em quando, quando falo sobre o Irão, falo na tese, que na nossa escola é importantíssima, porque é a síntese da pessoa, é a explanação do olhar para trás, ver o caminho que percorreu e ajudar outros no seu caminho. No fundo a tese é para isso. E a tese pode ser aquilo a que se deu mais importância, como por exemplo a parte técnica, a parte existencial, a parte energética, a parte física, a parte relacional com os outros, a parte... pode ser a conjugação disso tudo e pode ser mais uma coisa ou mais outra. E os avançados já estão a pensar há bastante tempo sobre a sua tese. Isso não são coisas que se chega ao final e depois é que se vai pensar na tese, são coisas que já convém ter um certo olhar desde sempre e ter consciência desse olhar... A tese é o culminar do percurso das sete fases.

Havia muita força naquela altura, os treinos eram excelentes. Também tinha a ver com a época. Os anos 70 foram o boom das artes marciais – como a arte do Bruce Lee – foi a moda das artes marciais. As pessoas davam tudo para treinar. Mesmo cá em Portugal era assim. Lembro-me, estava cá, era miúdinho mas lembro-me. Era uma moda em todo o lado, toda a gente treinava. E era como no Irão também. Gente a treinar e com energia muito dedicada para isso. E depois, com o passar do tempo as modas passam e só ficam aqueles para quem aquilo é mesmo o seu caminho.

Há muito mais coisas, pequenas coisinhas que se pode juntar, acerca das fases, e do Kung Fu porque o To'a tem muito que se lhe diga. Mas basicamente é esse aspecto de usar os conhecimentos físicos... mas depois podemos explanar aos pedacinhos. Mas isso depois vou guardar para a explanação da nossa e faço referência ao que é original e ao que é novo. Depois, quando se entrou no período do Komeni, da revolução islâmica, muita gente saiu de lá.

[A Introdução do Kung Fu To'a em Portugal]

G: Quem também saiu do Irão na na altura do Komeni foi o Shahram, que foi aluno de um aluno do Mirzaii. E para tirar a sétima fase não era qualquer um, havia pouquinhos no Irão com a sétima fase. Além de demorar muito tempo, também havia um teste muito forte, onde quase ninguém passava. Segundo o Shahram conta, em quarenta que estavam para passar, na época dele, para a sétima fase, ele acha que só passaram, com ele incluído, dois ou quatro. Mas o Shahram na altura disse que depois o Mirzaii decidiu que passavam todos, porque já estavam numa situação de ruptura com o sistema. E, quando o Shahram veio para cá, começou a ensinar o Kung Fu To'a com uma pequena alteração, por causa do seu caminho de vida. Eu não quero falar em questões de personalidade, mas por causa do seu caminho de vida, do que ele escolheu, da sua personalidade... ele ensinou um tipo de Kung Fu To'a que já é um bocado uma variante. Aliás, nós nem sequer tínhamos contactos, nem ele queria contactos com as outras escolas de Kung Fu To'a, exactamente por causa disso. Não tinham muito a ver uns com os outros...

P: Ele tinha um caminho de vida diferente das outras pessoas do Kung Fu To'a, um caminho de vida diferente do ‘geral'?

G: Sim, o caminho de vida dele tinha a ver com o que ele era e com a religião que ele professava. E ele dizia que o Mirzaii era um ateu enquanto ele professava a religião de Deus. ... Era uma espécie de um corte porque, e aqui voltamos outra vez ao To'a original, a questão do To'a original (na Pérsia) era descobrir o aspecto divino em ti. E quando a gente descobre o nosso aspecto divino não mais se sente servo, seja do que for. É como o Rajneesh diz, que eu adoro – isto tem de ser entendido num contexto, neste contexto do que estamos a falar – «quando tu conheces o teu corpo, o funcionamento do teu corpo, não mais acreditas em Deus.» Quer isto dizer que quando uma pessoa vê que a questão da saúde, a questão da inteligência ou da capacidade, a questão da luz... tudo é uma questão de... estás a ver... de dentro e de... [inominável]. Quando a gente vê que está na nossa mão, não mais acredita em Deus. É óbvio que quando uma pessoa está à rasca é que começa a chamar pelo pai, e depois quando já não tem pais apela para um pai fictício. E isto é muito marado, para o sistema, para a religião, para tudo o que encontra; por um lado é libertador, mas por outro é arrogante... e isto era o To'a original. O To'a original era assim, e muito baseado nos sufis, os dervish; estava impregnado de muitas coisas...

P: Os dervish?

G: Nunca ouviste falar dos sufis, dos dervish?

P: Não.

G: Aquele grupo místico dos muçulmanos? Todas as religiões têm um aspecto místico. A cabala é dos judeus, também há os cristãos místicos... sabes o que é a mística?, é a união, sem intermediários, de nós no todo. E os sufis são aqueles dervish, aqueles que dançam à volta, sempre a rodar... Fazem aquela meditação...

P: Não conhecia.

G: É muito interessante. E eles chega a uma altura em que começam a cantar que são Deus... e isso é altamente subversivo para uma religião tão... Pronto, isto é só um aparte. Ele cortou, não dizia mal, também acho que não vale a pena dizer mal: há que ser realista quando é necessário ser realista, há que dizer as coisas com um sentido prático. Quando as coisas não têm sentido prático não vale a pena estar a dizer mal, não é? E ele nunca dizia mal, dizia que não estava interessado e acabou. Pronto.

P: Isto é um bocado a questão da subjugação, não é? Porque é a tal cena de uma pessoa sentir que, ao estar a expandir-se completamente, a seguir completamente o seu próprio interior, está a ser arrogante. E ou as pessoas sentem que não estão a ser arrogantes e acreditam em si próprias e pronto, tudo se torna de certa maneira; ou então, ficam com medo de estar a infringir alguma coisa, não é?

G: Exactamente...

P: Que é um bocado esse medo, de estar a infringir alguma coisa, de estar a dizer alguma coisa que não se tem autoridade para dizer.

G: Exactamente.

[Do Kung Fu TO'A ao Kung Fu TO'A – Flor de Lótus]

G: O Shahram esteve cá dois anos, de 1983 a 1985. Nessa altura eu já treinava Kung Fu há bastante tempo, desde os anos 70; já tinha um certo jeito e fui logo nomeado número um. Ele fazia as coisas de uma maneira muito hierárquica, havia o número 1, o número 2, etc, toda uma construção hierárquica. Agora, isto é para explicar a evolução, porque é que se passou do Kung Fu To'a para o Kung Fu To'a – Flor de Lótus.

A questão tem basicamente a ver com a minha maneira e a maneira dele. A maneira dele é a maneira tipicamente tradicional, que se calhar já vem do extremo oriente, tipicamente Confucionista, que não se chama Confucionista, porque Confucionista é na China, mas que está impregnada em todo o lado, e onde se preconiza a tradição, as hierarquias, a obediência, etc. Quando isso é um requisito básico, trata-se sobretudo do culto da personalidade, já não é o culto da individualidade e do verdadeiro desenvolvimento do ser. Quer isto dizer, se as pessoas te obrigam a responder de certa maneira, se não podes dizer o que sentes, se não podes errar, se não podes experimentar, se são pessoas que não te deixam crescer no teu próprio caminho, que criam uma imagem de perfeição onde a perfeição não existe... Então as coisas, das duas uma, ou vão ficar falsas, ou vai haver ruptura. Foi isso que aconteceu. Eu não fui contra ele, tive sempre até ao último momento um compromisso entre o que eu sentia e o respeito pela escola (porque a escola era ele) e fui até ao mais possível com um pé num lado e um pé no outro. Até que chegou a uma altura em que ele próprio que me disse que eu teria de seguir o meu caminho. Ou melhor... deu-me a escolher. Ou ficava de um lado ou ficava do outro. E eu escolhi, ficar do outro... (risos) Isto é para dizer as coisas como elas são, em termos do que é que é importante, do que é que é real. Depois os pormenorzinhos não interessam, não está cá a pessoa, há outras versões... agora o que é é isto: chega a uma altura que é assim, eu estava dividido, tentava sempre ser conciliador (entre as duas perspectivas). Depois quando houve a separação, ficaram duas escolas, a escola da linha dele e a minha escola: a escola da minha linha.

Depois, uma crítica que eu fazia ao Kung Fu To'a era faltar-lhe muita coisa. Era limitado. Não só os treinos que se faziam mas as abordagens. E então uma das rupturas foi exactamente eu incluir coisas que não eram da tradição do Kung Fu To'a. Mas eu introduzi só por uma razão, porque o Kung Fu To'a era limitado, pelo menos o que ele [Shahram] me tinha ensinado. E isso começou a criar rupturas e situações. O que faltava exactamente ao Kung Fu To'a eram outras coisas, outras maneiras de fazer Kung Fu. E foi isso que eu acrescentei e por causa dessa falta de abertura, de meter uma abertura nova e coisas assim, é que se chamou a este Kung Fu «To'a – Flor de Lótus». E To'a – Flor de Lótus porque no Oriente sempre foi comparada a evolução do ser humano com o crescimento de uma Flor de Lótus. E no fundo isto ia de encontro à própria essência do Kung Fu To'a, que era o crescimento por níveis, por fases.

E esta imagem da Flor de Lótus é tipicamente indiana, em que se conta que a semente do lótus cai na lama, tal como nós, que vimos parar a este mundo. Já somos tudo, mas em potencial, ainda não manifestámos. Já lá está tudo, está lá tudo dele [filho do Guilherme, que estava ao colo], só que não está manifestado. E então cai na lama, a lama é o caos, mas é o caos que ao mesmo tempo é confusão mas também é o alimento, é o substrato de tudo. E a semente, confiando em si própria, sente que há luz, que há o sol. Ela rebenta essa casca, que é exactamente a casca do ego. Vai expandir e – em sete camadas de luz, até chegar ao cimo – floresce. Depois há aquelas imagens indianas com o lótus cá em cima (na nuca) que são os sete chacras; e quando floresce o lótus é a manifestação da lama. Ou seja a gente veio a este mundo para espiritualizar a matéria, e a matéria quando é espiritualizada transforma-se em corpo, nos instrumentos que criamos e usamos, na artePunho, etc; tudo isso é a matéria espiritualizada. E o lótus é a fragrância, o que irradia dessa espiritualização.

E isso é tipicamente a cena indiana, e que está na base do crescimento do To'a, das sete fases, dos sete níveis do homem, dos sete tipo de consciências; e nós utilizamos isso. Porque este Kung Fu foi logo desde o início muito virado para a continuação do esoterismo e do misticismo e há muitos Kung Fus que não são assim. A maior parte dos Kung Fus, os Kung Fus de que nós falámos, quando vais ver os emblemas é só tigres e garras e espadas e aquelas coisas todas. Têm os códigos Confucionistas, têm uma breve alusão ao budismo, que, da maneira como eles o usam, é sobretudo uma coisa ritualística, é o culto de Buda: têm lá o altar, mas de transformação não tem nada, porque eles são muito afectados pelo que se passa nesta dimensão. Mas tentam, pelo menos têm lá o símbolo, pelo menos tentam lembrar-se disso.

E este Kung Fu não... é muito místico. Os símbolos deste Kung Fu (do To'a original) são muito místicos. O primeiro símbolo é o símbolo da força. Para a gente, seja o que for tem que ter uma força para quebrar a rebentação, para quebrar a casca da semente. Mas logo este primeiro símbolo tem um círculo dividido em três partes em que uma é material e duas são o espiritual. O que é espiritual é sempre o que está para além, então primeiro é o corpo, a cabeça do lado e a cabeça do outro, a mente. Uma parte física e duas mentais. Depois tem o símbolo do...

P: Mas qual é esse símbolo?

Símbolo da Fénix - digitalização artística por Tiago OliveiraG: É o punho. A gente nunca utiliza porque na altura parecia o símbolo do PS! (risos) E depois tem um círculo dividido em três partes. Depois o Fénix que está muito presente na tradição Persa, com histórias muito bonitas. Há muitos que têm yantras, são desenhos geométricos. é como se fossem uns mandalas geométricos, para a concepção do movimento, para a concepção do pensamento... mas isso não são bem símbolos do Kung Fu, porque depois também havia símbolos que tinham o coração, outros que tinham o cérebro. Coisas assim desse estilo. Mas pronto, depois há outro símbolo que é o homem-pássaro, que é muito giro. São tudo símbolos que, quando os vi, senti logo que era isso que eu gostava. O Kung Fu para mim nunca  foi uma arte exótica nem uma arte de luta. Foi uma arte da vida, estás a ver? E nós continuámos isso. Não quer dizer que o Shahram não o fizesse, ele fazia e também era muito religioso; só que de uma maneira que não era a minha.

P: É aquela cena da subserviência, não é, da submissão?

G: É.

P: Porque é assim, quando uma pessoa se submete a qualquer coisa exterior também ensina os outros a fazer a mesma coisa, a seguir esse caminho.

G: Exactamente. E mais do que isso. Mais do que ensinar, a querer mesmo... porque normalmente as pessoas, quando ainda não se libertaram completamente, ou quando ainda não têm uma boa dose de libertação, sentem-se bem quando há muitos seguidores no mesmo caminho. Ou seja: «eu estou aqui, eu penso que isto é certo, se houver muita gente à minha volta a dizer que é certo eu vou achar que é muito certo. Agora se houver pouca gente a dizer que é certo eu vou começar a ficar dividido.» Ou seja, não fica contente só porque ele acha que é certo. Podem até dizer, mas não ficam.

P: Mas pode até ser um acto de amor... «se eu me sinto bem assim também quero que os outros sintam a mesma alegria».

G: Só que é assim, tu chamas a isso amor, e sem dúvida que é amor. Só que há amor e amor. Há um amor mais limitado e há um muito mais... e o que eu chamo verdadeiramente amor é o amor em que a gente sugere e não pressiona. E mais do que isso o verdadeiro amor, o amor cósmico, é o amor em que a gente fica contente por ter a nossa, fica contente por haver gente como nós e fica contente por haver gente diferente de nós, de muitas maneiras. Porque o cosmos tem muita cor. E se todos fôssemos praticantes de Kung Fu, se o mundo fosse só budismo, se o mundo fosse só uma coisa, era um mundo foleiro. Por mais que nós achemos que gostamos do Kung Fu, da arte, se toda a gente fosse do Kung Fu e da arte o mundo era feio, horroroso, nem dava para viver. A mesma coisa nas religiões. E então isso é que eu chamo de amor. É o todo. Por isso é que eu não concordo: sem dúvida que era amor, porque a intenção era essa, aliás ele era muito bem intencionado e ajudou muita gente. Só que isso para mim não chega, temos de ser realistas.

E nesta história toda havia o culto da personalidade, da imagem que se dá para o exterior. Em nome de boas coisas, porque é assim, com uma imagem boa tu chegas com uma mensagem mais longe. Agora é assim, até onde é que se pode pensar muito na imagem. A imagem deve ser pensada em coisas muito particulares e muito práticas, porque pensando muito na imagem estás lixado. Porque às tantas consegue-se uma coisa e às tantas topa-se que aquilo é tudo falso e volta-se tudo para trás, e mais do que para trás, volta-se para a negação.

Pronto, de qualquer maneira ele era e é bastante religioso, só que não era a minha concepção religiosa. Não me sentia como peixe na água com a concepção dele. Mas foi o continuar das filosofias mais tipicamente Budistas Zen da concepção To'a original, que está muito cheio de Zen. Com outras coisas que eu não aprendi mas fui juntando e, mais do que isso, fui redescobrindo, porque uma coisa que acho muito interessante é que há coisas que não é preciso estar a dizer. Já se disse uma base, agora o resto a pessoa que descubra. Não tem de andar a saber todas as migalhinhas de uma ponta à outra. E há coisas que se foram redescobrindo acerca do To'a sem uma grande necessidade de estar a saber ao pormenor e à espera das últimas novidades do que é que é isto ou do que é que é aquilo. Há coisas que estão implícitas e basta uma pessoa ler aqui e meditar, sobre isto e aquilo, e, daquilo que já sabia até aqui, volta lá com outro olhar e já vê muito mais. E pode até chegar a ter contacto com os mestres, por exemplo através das formas.

[Perguntas profundas – respostas profundas]

G: Tradicionalmente o Kung Fu era o contacto com a fonte sem poder ir à fonte. Já os mestres morreram, já estão noutro sítio qualquer, e se a gente aprendeu as técnicas bem, estamos sempre a crescer a evoluir. E as técnicas estão a evoluir e está tudo a crescer e está a comunicar com o fundador.

P: É como se as posições fossem uma linguagem secreta para atingir a mente, as intenções originais, a maneira de pensar do fundador...

G: Sim, são um meio para se evoluir. Agora, elas em si... reflectem; é como num oráculo ou num I-Ching: para uma pergunta superficial, resposta superficial, para uma pergunta profunda, resposta profunda. Ou seja, consoante a maneira como nós as abordamos, assim é o que elas dão. Elas são um meio. Ou seja, quando nós vamos evoluindo e vamo-nos aprofundando e vamo-nos colocando questões e vamos reflectindo profundamente sobre o que é um ratô, o que é que é cada um destes movimentos, cada uma destas coisas, assim vêm respostas profundas. Por isso é que não basta aprender perfeito. É a grande história: aprender perfeito é o ponto de partida, porque o grande ponto é exactamente a tua relação com as coisas.

P: O significado das coisas...

G: É. Estar sempre a criar novos significados para as coisas.

P: No fundo isso tem um bocado a ver com a analogia. Com o facto de o Kung Fu ser uma analogia com a vida?

G: É. E a vida ser analógica.

P: E a realidade. Porque as questões que colocamos, no fundo é extrapolar aquilo que fazemos fisicamente para outros níveis.

G: Exactamente, aquilo que fazemos bem e aquilo que vamos conhecendo, para outras coisas. Quem conhece bem esta vida conhece outras vidas. Conhece esta dimensão [mas também outras]. Porque é tudo semelhante, é tudo crescimento, é tudo expansão, é tudo Yin-Yang, satisfação, etc. Mas quando se tem o sentido «para além de», então tudo isto tem sentido, já não se anda à volta mas anda-se em espiral.

Então por isso é que o nosso Kung Fu é considerado um Kung Fu um bocado à parte, porque é um Kung Fu muito filosófico, esotérico. E as pessoas sabem que há muita gente que vem para o Kung Fu já por causa disso. Há gente que é por causa do Kung Fu, mas muita gente, e isto é dito pelas pessoas, se não fosse este Kung Fu não treinavam Kung Fu. Mas muita gente mesmo, ao longo do tempo, isto [o aspecto filosófico/esotérico] é uma coisa forte do nosso Kung Fu. É uma coisa forte mesmo, mesmo, mesmo. Se eu não dissesse isto não estava a ser realista, porque a grande força deste Kung Fu é a transformação. E mais do que isso, pessoas com grande capacidade de observação, que trabalhavam na secretaria do CAA e coisas assim, esporadicamente disseram, que nunca viram pessoas [os praticantes do To'a] a transformarem-se tanto. E isso é muito importante para mim, e o nosso Kung Fu To'a – Flor de Lótus continuou sempre essa linha, que já vinha do Kung Fu To'a original, e que, no fundo, é o Kung Fu original.

[Um Kung Fu da transformação]

P: Achas que houve um certo retorno ao Kung Fu original?... pelo menos no espírito...

G: Primeiro temos que falar do que é o Kung Fu original. Para mim o Kung Fu original é o da transformação. A transformação, do encontro, da expansão da individualidade. No fundo todos tentam fazer isso, toda a gente diz isso, não há ninguém que não diga isso. Agora, na prática (risos)... E eu acho que nós vamos bastante a isso.

P: Mas tu chegaste a conhecer o fundador (o Ibrahim Mirzaii)?

G: Não, não cheguei a conhecer o fundador. Claro que, ao ir mais neste caminho houve transformações no Kung Fu To'a – Flor de Lótus em relação ao Kung Fu To'a que veio para cá e em relação ao Kung Fu To'a original [do Mirzaii]. Porque há pontes entre o To'a – Flor de Lótus de agora e o To'a original, entre o To'a que veio para cá e o To'a – Flor de Lótus, e entre o To'a original e o To'a do Shahram. Há pontes de união em vários aspectos. E o que eu cortei, ou melhor deixei, ou melhor, nem sequer deixei, porque ao acrescentar há coisas que [se modificam]. Por exemplo, se uma pessoa trabalha fisicamente toda a sua energia, 100% vai para o físico. Então é uma pessoa física. Mas se uma pessoa, também quiser trabalhar a mente, também há muita energia física que vai ter de ir para a mente, que já não vai estar no físico. E não quer dizer que se abandonou o físico. Quer dizer que a energia tem é que ser distribuída por vários sítios.

P: Então se uma pessoa treinar muito a nível físico, um treino muito intenso, a nível dos músculos, etc,

G: Não é o treino, é viver a treinar fisicamente, atrofia a cabeça.

P: Em termos práticos o que é que isso quer dizer?

G: Quer isso dizer que não se evolui!

P: Não, em termos práticos o que é que seria um treino muito físico?

G: É viver só para o físico. Correr imenso, fazer muito exercício físico, fazer muitas repetições. Fazer tudo em função do físico. Comer em função do físico, etc. E isso é um desperdício. Porque o físico vai desaparecer, e quando desaparecer o que é que fica? (risos) Ficamos no ponto de partida.

E o que acontece é que no nosso Kung Fu começámos a ter outras situações que fizeram com que uma certa energia concentrada deixasse de estar. Para já uma coisa muito importante é que abandonei a hierarquia rígida típica, que era um bocadinho ameaçadora, assustadora, assim um bocadinho mais soft. Quando as coisas entravam nos avançados, aquela entoação toda, estás a ver?

P: E não sentes que pode fazer um bocado falta a algumas pessoas haver uma hierarquia mais rígida neste Kung Fu? Porque nós aqui estamos muito à vontade, no Kung Fu To'A – Flor de Lótus estamos completamente à vontade. Não achas que há certas pessoas que sentem um bocado perdidas no meio desse à vontade todo?

G: É assim, é que nesta escola nós apelamos para a consciência. Quem precisa disso tem de ir para outro sítio, percebes? É que é mesmo assim. Toda as escolas têm níveis. E uma escola de Kung Fu To'a pode ser nível 1, 2, etc, e a própria escola pode evoluir. E a nossa escola já tem um nível mais evoluído. E eu só posso funcionar assim, porque senão era falso. Ajudamos e preconizamos as pessoas a terem disciplina interior e a ir ao essencial da sua individualidade e a valerem por elas próprias e a não valerem por hierarquias ou nomeações... percebes? Por um lado facilitou-se imenso mas por outro lado dificultou-se imenso.

P: Precisamente por causa disso não é? Porque as pessoas tem de ser por elas próprias.

G: Exactamente.

P: E não pelo cinturão.

G: Não pelo cinturão ou porque sabem isto ou porque sabem aquilo, estás a ver? E isto para mim é uma coisa mais evoluída. E eu só posso funcionar assim, porque senão era falso. Era falso para mim especialmente, e ecoava essa falsidade na escola e em tudo. Agora é óbvio que há escolas que estão a trabalhar nessa função. Pode haver uma certa necessidade de pertença, de força, de identidade, de nós estamos certos, e tudo bem.

P: Mas também se aprende, não é?

G: Exactamente. É uma evolução. Mas eu acho que, para mim, essa é a evolução das crianças. Quando a gente pensa num templo: viver a vida só a treinar, cenas duras, muito duras, e não sei quê não sei que mais. Estás a ver, isso é a primeira imagem que se tem de criança.

P: Isso acontece em tudo, não é? Também há a nível intelectual. A pessoa está sempre a estudar e a pensar que vai ser uma cena muito boa e, se calhar, está a fugir de si própria.

G: É como o Rajneesh disse «cada vez sabes mais e mais sobre menos e menos.» Por isso o que é mais importante é despertar a consciência , e é preciso ter muitas ferramentas e muitas ajudas. E com isso alterou-se a aula... porque no passado eu via que só quem aguentava é que ficava. E o que é aguentar? Não é uma grande coisa aguentar. A gente não veio a este mundo para aguentar.

P: Quem não aguentava não podia continuar?

G: Desistia... e quem aguentava... o que é que era isso de aguentar? Aguentar eram os burros. Os burros é que aguentam, para trabalho. Apesar de tudo, eu cultivo a individualidade mas a personalidade está lá sempre. O inconsciente está lá sempre. Por exemplo há naturezas e naturezas, há naturezas que são mais softs, há naturezas que não gostam de interferir com as situações, gostam mais de, subtilmente, dizer as coisas pelo ar, quem quiser que apanhe, não gostam de pressionar. Todas as naturezas são importantes. Pois a minha natureza é tipicamente a do gato, é muito diplomata, não gosta de conflitos, não gosta dessas situações e evita.

P: Mas aquilo de que tu estás a falar em termos de aquilo que gerou a ruptura é muito mais do que uma questão de personalidade?

G: Sim, é muito mais. Estamos a falar da evolução, o corte que veio a seguir tem muitas coisas, muitas nuances. Para já a escola evoluiu, e aquilo que nós dávamos para uma fase, agora damos para uma data delas. Ou seja, os ênfases, enquanto antigamente tínhamos uma cor, agora temos várias cores.

P: Várias cores, como assim?

G: Por exemplo, a imagem típica deste Kung Fu  To'a – Time Operation Animal– é acordar o animal, acordar o aspecto basicamente matéria, terreno, é energia terra, de maneira que é tudo muito físico, muitos saltos, muito trabalhar o físico, muito muito isto. E basear todo o treino nisto. E isso criou uns padrões de movimento e de energia muito fortes nesse sentido. Quando tu começas a meter água (a segunda fase), já é terra com água, e já é uma situação em que há essa força (da terra) com uma certa fluidez. Em relação à terceira fase, que era o máximo que havia na altura – só muito poucos é que a treinavam – portanto era basicamente Anatova e Atadô (a primeira e a segunda fase). No fundo o treino era só terra e água. Não tinha fogo não tinha metal. Os ênfases não variavam muito porque era uma escola que se baseava só nas primeiras fases, no básico, na repetição, no criar padrões, descondicionar para condicionar de outra maneira... e não para depois voltar a descondicionar.

P: Então isso quer dizer que não havia transformação, pelo menos não sentias isso...

G: Para mim não. Principalmente porque eu já tinha um grande background de Kung Fu e soava-me a muito pouco. E o que eu pensava que viria não vinha, vinha mas era mais técnicas...

P: Faltava o conteúdo, não é?

G: Não vinha como utilizar essas técnicas, como torná-las vivas, o que é que isto tem a ver com a vida, estás a ver? Ou melhor, vinha mas era pouco e eu precisava de mais.

P: Isso é estranho porque, pronto, agora falando pessoalmente, aquilo que me atraiu no Kung Fu To'a, foi precisamente o facto de eu sentir que aquilo tinha muito a ver, mesmo os movimentos as posições, com essas analogias que se podem fazer.

G: Mas é claro! Mas tu estavas satisfeito, eu não estava: era pouco.

[Pisar pegadas não transforma ninguém]

P: No fundo a minha pergunta era: o Kung Fu To’a, tal como foi desenvolvido no Irão, esse Kung Fu parece ser uma cena completamente de transformação, não é?

G: É, é... [mas só até certo ponto]

P: Não parece criar um padrão novo para substituir o antigo.

G: Então e aquelas repetições que eles faziam, de quinhentos movimentos, quinhentos pontapés daqui, quinhentos pontapés dali, matôs até mais não, repetir as falas até mais não, o que é que é isso?

P: Estás a falar do Irão?

G: Sim, são padrões...

P: Isso toca na pergunta que eu tinha para fazer desde o início: o Kung Fu To’a, tal como apareceu, não consideras que fosse um Kung Fu Taoista?

G: É que o Taoismo tem de vir de nós: do exterior não vem nenhum Taoismo. Agora é assim. A gente está no escuro, de repente vê uma luzinha: [e diz] «é o sol». Mas depois aquela luzinha é pouco, e vem mais uma luzinha: «agora é que é o sol», ... «agora é que é o sol» ..., «agora é que é o sol» ... não se pode dizer que não há transformação, não se pode dizer que não era verdadeiro Kung Fu, não se pode dizer nada disso... agora o que se pode dizer é que para mim era pouco. Principalmente porque não havia possibilidade de criação. E a coisa que está mais próxima da verdadeira espiritualidade é a criação.

P: Deixa-me ver se eu percebo só uma coisa: mesmo que uma pessoa aprendesse agora este Kung Fu To’a – Flor de Lótus, e mesmo que percebesse montes de coisas, se depois fosse ensinar, digamos assim como uma técnica, acabava por se perder também isso [o Tao], não é? Porque a verdadeira transformação só pode existir com criatividade em cada momento.

G: Exactamente!

P: Não pode ser uma cena repetida, ir buscar, com precisão, por mais preciso e perfeito que seja...

G: Pisar pegadas não transforma ninguém...

P: Tem que ser sempre novo...

G: Há que inovar, não há que imitar. E é isso que eu preconizo. E as escolas de Kung Fu To’a que saíram da nossa escola têm essa liberdade completamente, é óbvio...

Por isso a gente nunca pode dizer, e temos que ter cuidado com as palavras, porque é mentira dizer que aquela escola não tinha, ou que aquilo não tinha [o poder de transformar]. Mas depende sempre do contexto de onde estamos a ver. E isso é que é chato, por isso é preciso ter muito cuidado para não estar a ferir ninguém. Pode-se é dizer, como no meu caso, que não me satisfazia. Era pouco. E havia muita gente satisfeita.

P: Mas estás a dizer basicamente duas coisas, que quebraste um bocado com a hierarquia...

G: Eu não quebrei com a hierarquia. Eu comecei a puxar, porque a verdadeira hierarquia é mais invisível, já implica outra... eu nunca fui contra nada. Era assim, se houvesse algum problema, em vez de me basear, como sempre fora no passado, em que o iniciado é que tem sempre de respeitar o avançado, seja no que for; o ênfase agora estava exactamente no contrário: «avançado, porque é que ele te desrespeitou?» Estás a ver? E é óbvio que, em certos casos – no nosso Kung Fu nunca houve problemas, mas no passado – é óbvio que houve um ou outro caso em que se desrespeitou o avançado e eu perguntei: «porque é que ele te disse aquilo?» e ele deu-me uma resposta assim toda ligeira, e é óbvio que eu tive de lhe dizer que se ele não gosta, não sabe dizer porquê, não sabe nada, então não está lá a fazer nada. Estás a ver? Não abandonei, mas fui ter com o avançado e perguntei «porque é que...?» E é esse ênfase que se começou a dar. Eu não cortei nada, só comecei a acrescentar outras coisas. E acrescentar estas coisas veio trazer confusão a muita gente, a quem não está nesse nível. Porque eu tenho de ser verdadeiro comigo próprio. É onde eu estou, é o que eu tenho que fazer, não posso estar a fazer uma coisa falsa. É aí que eu cresço. Se não, não cresço; se não, estou ali a fazer um trabalho. Acho que não viemos a este mundo para trabalhar! Para estar ocupado sim, definitivamente, sempre. O outro é o que é, mas o problema é exactamente isso, éramos muito diferentes. Havias coisas....

P: Pois, porque a outra coisa que estavas a dizer era sobre as fases...

G: Pois, isso é um aspecto, a escola ainda estava a começar, e era normal ser aquilo. Mas paralelamente a isso também não crescia muito para a frente no outro aspecto, da expansão da mente...

P: Mas também havia isso nesse Kung Fu [do Shahram], essa mistura entre religião e Kung Fu?

G: Sim. E eu no início até acompanhei e até achava giro...

P: Foi aí que houve o corte, não?

G: Não. No início é tudo muito bonito. Eu nunca fui contra nada, só fui a favor da minha cena. É o único dever no mundo que nós temos, a favor da nossa cena, sem magoar os outros. Agora, se os outros ficam magoados é problema deles. E é muito difícil chegarmos a um sítio e definir, porque isto é muito subjectivo, e há pessoas que ficam muito magoadas porque «eu fiz, eu fiz por ti, eu fiz por ti, e tu não correspondeste.» Não. Eu faço pelas pessoas e por mim, e logo, quando as pessoas aceitam a minha cena as pessoas não ficam em dívida comigo. Está pago, está pago logo. Isso é muito perigoso, ninguém fica em dívida com ninguém. Agora, se as pessoas fizerem mau uso e portarem-se mal, da próxima vez não dou, é simples, é tão óbvio, não vou ter vontade nenhuma de dar. Essas pessoas que vão ter com outros da laia delas. É simples. A vida é simples, não tem que se estar a obrigar ninguém nem a cobrar de ninguém. O problema deste mundo é exactamente isso, é as pessoas terem demasiadas expectativas dos outros. Mas não têm que ter expectativas. Têm que ter uma relação natural, simples, de partilha directa; naquele momento está tudo. Aquele momento foi tudo. Sem ficar com obrigações, laços e coisas esquisitas.

P: É engraçado estares a dizer isso [literalmente] com um filho nos braços... mas pronto está bem...

G: Não, é assim, eu gosto muito dele e tenho de ser sincero: eu quero que ele seja o que ele é. Quero ajudá-lo o melhor possível a ser o que ele é, com muito menos dificuldades do que o que eu tive. Sei que ele vai ter algumas dificuldades dele, mas que sejam dificuldades superiores, que não sejam dificuldades estúpidas. Estás a ver, que sejam as dificuldades evoluídas, não sejam as dificuldades das faltas e do ter de aguentar, mas sejam as dificuldades tipo «quem sou eu?», muito mais evoluídas. E não vou estar apegado, que é a pior coisa que pode existir é estar apegado, para ele e para mim. Não posso estar apegado, tenho de dar o meu melhor, porque é um capítulo da minha vida. Dar o meu melhor, e é assim, eu só posso dar o que tenho, porque se eu dou o que não tenho, vou mais tarde cobrar dele, tenho que dar aquilo que transborda de mim, só o excesso.

Mas pronto, depois a gente vê porque havia muita roupa suja para lavar, mas mesmo muita. Não me venham dizer que há choque entre mim e os orientais, não me sinto ocidental, tenho muitas coisas ocidentais mas acho que estou para além do ocidente e do oriente. Eu não ligo à tecnologia mas uso a tecnologia para certas coisas que são importantes para mim, gosto da transformação. Mais, não sinto que o Oriente seja o caminho da transformação. Tem é a cultura da transformação, tem o esoterismo, e falta-lhes o exoterismo, e nós é ao contrário. Então acho que a cena é a junção das duas coisas, o esoterismo e o exoterismo, o dentro e o fora. Por isso eu não sinto que houve um choque entre mim e os orientais, mas... eu prefiro de certa maneira o Ocidente porque aqui é assim: «querem-me ensinar Kung Fu? Quanto é que levas para me ensinar a sétima fase? E toma.» Enquanto que no Oriente se vais e dizes isso eles ficam ofendidos. E o que é que eles querem? Por vezes querem que dês um cheque em branco, o que é pior.

P: Pois é a tal cena do confucionismo, um bocado isso, o culto da personalidade, o que estavas a dizer.

G: Exactamente.

[Interlúdio – O fim do mundo]

P: Por acaso isso foi uma grande desilusão que eu apanhei com o budismo, estava à espera que fosse assim uma cena... espectacular... e depois fui a um retiro... e pessoalmente, o que senti é que havia um bocado o culto da personalidade, em relação a coisas como pedir 'refúgio' num mestre e coisas assim. Aliás este último ano foi uma desilusão com as religiões todas, Cristianismo, etc... (suspiro)

G: Pois, eu acho que estás no caminho certo, sendo um bocadinho presunçoso da minha parte, mas acho que estás no caminho certo. Lembro-me de uma pergunta que fizeram ao Rajneesh, disseram: «eu ando muito desiludido com as coisas, aquilo que eu acreditava foi por água abaixo, aquilo que eu achava que era a Salvação...» coisas assim; e o Rajneesh disse assim: «Parabéns! Parabéns! Agora sim, não mais vais depender do exterior.» Porque a grande questão é esta: a cena toda da espiritualidade o que é que é? A espiritualidade o que é que é? Não sei. Agora, uma coisa é certa, quando é que a gente está mais próximo da espiritualidade? É quando está a criar, e a criatividade tem a ver com tudo, e a suprema criação é a criação da concepção cósmica, das mandalas dos tibetes. O que é que é a vida? Como é que eu resolvo qualquer problema em qualquer chacra? O que é que é isto? O que é que eu ando aqui a fazer? Isto não tem sentido, nós é que temos de criar esse sentido. Agora, estamos numa época, a era de Aquário, em que as coisas têm muitas nuances e muitas dimensões no tempo, há muita comunicação, muita coisa. Já não é fácil vir com uma religião e ela dar-te a solução. Já tem que se fazer uma síntese de muita coisa.

E o problema com as pessoas que agarram uma religião é que eles estão a viver num contexto que já não é este contexto. Agora este contexto tem muito mais coisas. O problema é este: é que esse contexto continua a ser válido, aqueles cristãos que se vêem aqui na tvcabo, eles têm razão, mas... falta-lhes muita coisa. Eles ainda estão na conversazinha do não faças porque vem o papão e come-te. Não conhecem a natureza humana, não conhecem uma coisa chamada «respeito pelo inconsciente», saber lidar com o inconsciente, em vez disso é o Satanás (risos). Pronto, bem, eu compreendo, isto é conversa de crianças quando a gente não sabe mais, mas cuidado...

P: São crianças a falar para crianças, não é?

G: Sim, cuidado que isto é perigoso, é muito perigoso. Isto é a causa da depravação toda deste mundo.

P: O que eu acho assustador é nós termos tanto poder militar. Armas nucleares e agora armas biológicas, armas químicas, e estão-se a espalhar e daqui a cem anos já vai haver muita gente a ter. E olho para as pessoas e não acho que as pessoas estejam preparadas. Eu olho para o Bush e aquilo é cómico, é cómico: é uma pessoa que tem um poder enorme no mundo e uma pessoa olha para ele e, o nível de consciência dele é mesmo... a ideia que ele me dá é a de uma pessoa que anda por um jardim e não percebe nada do que está à volta dele, só vê assim o chão, assim uma coisinha e não vê mesmo mais nada, e isso é muito perigoso...

G: A vida sempre foi muito perigosa.

P: Mas agora... Nós nunca tivemos tanto poder de destruição. Hoje em dia temos o poder de destruir quase tudo.

G: Mas por exemplo no passado estavas num sítio onde de repente chegavam os piratas e matavam toda a gente.

P: Mas era um sítio no planeta, agora é o planeta quase todo!

G: Mas há outros planetas, e havia inundações e pestes...

P: Mas aqui pode ser a aniquilação de quase milhões de anos de história.

G: É, mas acho que isso é cíclico.

P: Pois, e há outros planetas não é?

G: E também há uma coisa que é assim, estamos a garantir que não haja guerras com essas armas todas, garantimos uma certa paz. Que não haja uma "guerra dos cem anos".

P: Não sei, eu acho que isso é uma coisa muito transitória, porque também tivemos a experiência da II guerra que foi uma coisa muito grave, e criou-se as Nações Unidas e não sei quê, os judeus e aquela coisa toda. Mas à medida que as pessoas forem esquecendo isso, os horrores da guerra, eu acho que a guerra se vai tornar cada vez mais plausível. E também o fim da guerra fria, agora as coisas também são mais desequilibradas, há a grande cena de «vamos impedir que eles tenham armas nucleares» e eu penso que as coisas estejam a ir por um caminho que...

G: Estão, estão!! Estão muito perigosas. Agora não se tem o controlo. Antigamente o inimigo era ali e fazia-se um acordo com o inimigo. Agora não se sabe quem são os inimigo, está espalhado por todo o lado. Pronto, mas há sempre solução, há sempre solução. Agora,– e isto é uma coisa que não pode ser percebida intelectualmente, tem de ser existencialmente, tem de se meditar – a vida sempre foi assim e sempre há-de ser assim. Porque isto é uma escola. E as pessoas, a maioria das pessoas é básica... isto é uma brincadeira cósmica, no fundo. Como fazer bonequinhos: faz-se uma civilização, que bonito, umas crianças, de repente, pfiuu, parte-se os bonecos todos. Volta outro dia a fazer outra coisa qualquer. É assim que é a vida, sempre foi, vê-se observando, está escrito nos livros mais antigos. E isto só faz sentido quando nós nos lembramos do sentido eterno da nossa vida, e a gente não mais tem medo. Porque o prazer / vida não pode depender dessas coisas. É claro que a gente deve tratar bem a matéria, porque isso é um reflexo da nossa espiritualidade. É uma maneira de nós evoluirmos, respeitar bem a matéria, criar bases, etc, mas não podemos ficar apegados a isso. Isto vem do pó e vira pó. Agora é difícil ter a atitude equilibrada, de equilíbrio entre o deixa andar e o ficar bué de preocupado. É muito complicado, sei lá se os gajos voltam outra vez com aquelas ... é muita complicado. Isto está muito à beira. Tudo neste mundo, a vida neste planeta é um fiozinho. Se se estragar uma certa condição fundamental, a vida neste planeta desaparece. Um artista que é um grande artista, a sua criatividade, a sua inspiração, depende de um fiozinho, uma coisinha assim, fora isso acabou-se. A expressão da criatividade, tudo o que é supremo, quanto mais supremo é, mais...

P: Mais frágil...

G: Mais frágil, e mais forte, o que é giro. É forte porque manifesta uma grande transcendentalidade, para além da matéria, espiritual. Mas ao mesmo tempo muito subtil. E quanto mais nós crescermos mais vai ser assim. Porque a verdadeira civilização que tem de crescer é a civilização interior. E nós estamos a crescer numa civilização demasiado exterior: é preciso demasiada matéria, muita coisa, muita tecnologia, demais para se viver uma vida simples. E falta-nos a vida simples. Como diz o Tao, quando as pessoas viviam uma vida simples, não andavam a falar sobre o bem e sobre o mal, sobre o que é que era correcto e incorrecto.

P: Isso é um bocado aquilo do Alberto Caeiro, da vivência pura...

G: É, mas até lá faz sentido... tudo isto. Tudo isto faz sentido. Por isso é que é muito difícil dizer que aquilo é, aquilo não é. Claro que era, era muito útil para muita gente. Mas há que evoluir e os tempos são outros. Tu já não encontras militantes a treinar Kung Fu como havia antigamente.

P: Sim, é verdade...

G: Claro que a escola já não pode ser a mesma. Se uma escola tem esse grau de exigência não encontra alunos. E eu sei de mestres do To'a, de vários sítios, que não têm ninguém, e no entanto são mesmo o braço direito do Mirzaii. E não têm ninguém, meia dúzia de gatos pingados. Porquê? Porque aquele método já não dá, já ninguém está para sofrer. As coisas são muito diferentes, e logo temos de acompanhar a situação. E é assim, para eu não me dar mal ou para qualquer pessoa não se dar mal, tem que a pessoa fazer em função de si própria. Cantar a sua cantiga e depois há-de haver pessoas que gostam dessa cantiga e cantam todos juntos. (risos)

É como o Rajneesh dizia: eu simplesmente canto a minha cantiga, se gostam, gostam; se não gostam... Neste mundo não têm que concordar ou discordar, pontualmente sim, mas no grosso não têm de concordar ou discordar. Ou estou a fim ou não estou a fim. Eu vejo tanta coisa, que há pessoas tão básicas que chegam a outras a que eu não chegava. Se eu quisesse chegava mas não dava para chegar porque era uma traição ao nível onde eu estou.

P: Isso é que eu não entendo muito bem. Eu acho que uma pessoa muito evoluída consegue chegar ao básico também.

G: Consegue chegar, mas não consegue viver. Eu consigo chegar e dar uma aula e é tudo muito bonito. Mas não consigo estar lá. Estar lá frequentemente.

P: E é necessário, para ajudar? Quer dizer, para servir de caminho não é necessário estar lá, sistematicamente ou muito tempo. Às vezes basta uma vez. Uma vez e já chega.

G: Pois, isso aí sim, uma vez sim. Mas estar naquele caminho, a trabalhar aquele caminho, é preciso estar lá muitas vezes. Isto é tudo uma questão de vocação. Toda a gente precisa de todo o tipo de trabalho. A gente não vai dizer que este trabalho é melhor que o outro. É tudo uma questão de vocação. Há gente que gosta de tratar dos animais. Há gente que gosta de tratar dos velhinhos, de arqueologia, de sintetizadores, de crianças, de desfavorecidos, de doentes, dos mais pobres etc. Eu gosto por exemplo de tratar de pessoal que não tem falta material, não tem falta intelectual, mas está... estás a ver [no caminho da expansão da consciência]... esta é o que eu gosto mais de dar. Porque é onde eu estou também, e dá para conversar e ter esta conversa. Agora não posso ter esta conversa com outras pessoas. E vou estar a conversar cenas de pessoas que têm «cuidado não faças isto, não faças aquilo, olha que aquilo é mau, depois dá mau resultado... etc». Por vezes tenho estas conversas com pessoas que aparecem no Kung Fu, é raro, mas, em algumas alturas. Mas eu seria muito infeliz se tivesse que estar a fazer isso constantemente.

P: Há bocado estavas a dizer aquilo da brincadeira cósmica...

G: Ah! Há três deuses indianos: Brahma, Vishnu e Shiva que são o da criação, manutenção e destruição...

P: Porque uma coisa engraçada, depois de ter ido aquele concerto que deste, fui para casa, e senti que podíamos ver o Universo como um gigantesco acto de amor. Tipo, quase um excesso, um transbordar de amor e tal... e que nós estávamos rodeados disso, inundados disso, só que, se calhar só uma pequena parte de nós é que... é que respondia ou conseguia fazer isso...

[Houve uma interrupção, jantar do Guisinho, quando recomeçámos puxei de novo para o tema para a hierarquia...]

[De volta ao Kung Fu To'a em Portugal]

P: Tu estavas a falar daquilo que diferencia as duas [a escola do Shahram e a do To'a – Flor de Lótus], ou, aliás, como é que a transição se fez, e começaste por dizer que uma das coisas que alteraste foi a hierarquia...

G: Mas eu não alterei (em relação à hierarquia). Foi uma consequência da mudança de ênfase. O ênfase era no culto de uma imagem, o que aconteceu sempre no passado: as pessoas viviam muito em função de uma ideologia, em função de uma ideia, em função de uma escola. Ao mudar o ênfase passou a ser ao contrário: a escola em função das pessoas. E isto fez com que, essa energia ao virar-se para dentro, se diluíssem montes de coisas que tinham a ver mais com a imagem (com a hirarquia), e começou a puxar a energia para cima, mais para a cabeça, e isso fez com que certas pessoas desistissem. E este trabalho já vinha a ser feito. Foi dois anos com ele cá e foi cinco anos com ele no Canadá...

P: E foi nessa altura...

G: E foi nessa altura que eu tive um pé no lado e um pé no outro...

P: E as coisas começaram a evoluir...

G: As coisas começaram a evoluir, por um lado a evoluir, por outro lado, a começar a abrir uma brecha. E quando foi a separação, a maior parte das pessoas vieram comigo.

P: Então quer dizer que enquanto o Shahram esteve lá, durante esses cinco anos, tu não só modificaste ou acrescentaste...

G: Acrescentei.

P: Foste acrescentando quer ao nível dos objectivos, do conteúdo, etc, mas também a nível, provavelmente técnico, e coisas desse estilo...

G: Sim, lutas etc...

P: E como é que foi a reacção das pessoas?

G: As pessoas pensavam que fazia tudo parte do mesmo.

P: Só o Shahram é que não!

G: Mas alguns alunos também começaram a desistir porque era assim, porque quem ficava à frente, quem ficava, era quem aguentava: o treino era muito físico, era basicamente físico. E algumas dessas pessoas, quando se começou a puxar um bocadinho mais para a mente e para a criatividade, essas pessoas... não existe, não conseguiam. Não conseguiam acompanhar. Mas pronto, basicamente essas desistências já vinham de trás, e com a separação a maior parte veio comigo.

P: Quando o Shahram saiu vocês estavam a treinar a terceira fase?

G: Quando ele foi para o Canadá, ao fim de dois anos?

P: Sim.

G: Os mais avançados estavam na terceira fase. E aliás,  ele deixou-me na terceira fase completa para ir ensinar aos outros.

P: Então e depois como é que...

G: Depois treinei no Canadá.

P: Ai foste ao Canadá?!

G: Fui ao Canadá. E depois o resto...

P: E como é que sentiste lá as cenas, no Canadá? Era mais parecido com o aquilo que tu querias ou era a mesma coisa.

G: No Canadá ele estava a dar aulas, só que no Canadá as pessoas não eram como cá.

P: Então continuaste a ser aluno do Shahram no Canadá?

G: Sim, sim.

P: Então a cisão deu-se cá ou lá?...

G: Foi assim, em 83 começou, em 85 ele foi para o Canadá, e em 89 estive no Canadá, e em 90 foi a separação.

P: Então foi no Canadá que aprendeste os outros estilos...

G: Sim. Aprendi quer dizer, aprendi até um certo ponto. Depois o resto foi compilação de muita coisa. Porque eu já sabia e tinha contactos com outros, e vídeos etc. E no fundo já há uma alteração técnica em relação ao original...

P: E não tiveste vontade de ir a outras escolas, tipo no estrangeiro e de aprofundar mais isso?

G: É assim, eu gostar gosto. Só que eu gosto de algo mais do que a técnica e o que eu encontro não é assim. [...] As técnicas são coisas mortas, o uso das técnicas é que vale a pena. Antigamente o segredo era a alma do negócio. Quem sabia era diferente. Agora o saber não quer dizer nada. O que se faz com o saber é que é a grande história.

[O papel do Kung Fu na sociedade de hoje]

P: Uma das coisas que eu te queria perguntar era isso, qual é o papel que tu vias no Kung Fu na sociedade de hoje?

G: O papel do Kung Fu na sociedade de hoje devia ser, basicamente, assim: No início devia ser «vive e deixa viver». A pessoa devia viver e deixar viver. Ou seja respeitar-se a si e respeitar os outros. Isso diz respeito aos códigos...

P: Mais do que respeitar, alegrar-se...

G: Exactamente, no nosso tempo, mais do que respeitar, é alegrar-se. Mas, mais ainda do que viver e deixar viver, é «viver e ajudar a viver». Que é, gostar que haja pessoas diferentes e estimulá-las. Para isso, o básico continua lá sempre, que é a pessoa tem de se saber defender, tem que não ficar vulnerável, tem que andar neste caminho e saber-se defender, ou melhor, mais do que se saber defender é não ter sítio para ser atacado, como dizia o Bruce Lee, numa mente calma e pacífica, nem mesmo o tigre consegue cravar a sua garra. Ou seja, não é uma pessoa estar pronta para se defender, mas é uma pessoa que não tem sítio para ser atacado. Isso é a base essencial.

P: E isto funciona a vários níveis, não é? Não é só a nível físico.

G: Tudo, tudo, tudo... A nível físico, falamos por exemplo do sistema imunitário, de a pessoa não se meter em alhadas, ter o sistema imunitário tão bom que pode comer o que quiser que não lhe faz mal...

P: Mas ao mesmo tempo ter cuidado com a alimentação...

G: Sim, mas ao mesmo tempo ser livre, porque pode ser intoxicado e o corpo limpa. A nível mental, por exemplo ter muito cuidado com o embarcar nos pensamentos, pode embarcar nos pensamentos que quiser mas tem de ter cuidado para não ficar encurralado, porque há coisas que têm de ser usadas e largadas, que não é para estar muito tempo com elas, porque quando a gente dá conta está a comprometer-se com coisas que já nem sequer têm a ver consigo, e que nem são ele. Então é basear-se sempre na simplicidade, não dar hipótese a que haja problema. É impossível. Não é tanto defender-se, é não dar hipótese, é a última fase. A primeira fase é defender-se, o escudo, ser primário, mas depois é exactamente o contrário, a pessoa quer apanhá-lo e não o encontra.

[O Sétimo Chacra]

G: Isto tem tudo a ver com conhecer-se a si próprio. Ao conhecer-se a si próprio não mais vai ser dependente, ou seja, está ligado também com a não-dependência, a pessoa não ser dependente, ser independente. Mas uma palavra mais certa é ser inter-dependente, porque a relação com os outros é muito importante, pois sem a relação com os outros não há evolução. Há uma primeira evolução que somos nós connosco próprios, mas depois tem de haver relação com os outros. E depois a relação com os outros é gostar da diferença nos outros, inspirar-se nos outros; mais do que isso, ajudar os outros a serem felizes, mais do que a serem felizes a serem extasiados. Para isso têm que ter uma coisa que é..., deixa-me ir buscar uma coisa que eu escrevi na capa de um cd... Que no fundo é esta dedicatória que eu faço:

Isto é dedicado a todo o ser humano que se cria a si própriono fundo este processo de se criar a si próprio, já não é o processo de ser moldado mas de se criar a si próprio a todo o momento – por isso vive, partilha e celebra uma eterna e infinita sensação de êxtase.

Percebes? É mais do que simplesmente estar feliz, ajudar os outros, não sei quê... é este processo de ser, mais do que bom, é ser extasiante. Extasiante é um bocado uma qualidade espiritual, e é isso que o Kung Fu tem para dar.

P: É viver o processo de criação de forma tão verdadeira e tão intensa que é como se fôssemos tudo no Universo ao mesmo tempo e sentíssemos toda a celebração em nós?

G: É, é. É o Chacra número 7...

P: Isso é muito difícil, quer dizer...

G: É a dimensão desta escola, esta escola tem isso... Que inclui as outras escolas, que inclui tudo...

P: Tu falaste de dois aspectos, por um lado o aspecto de dar e receber, e ajudar os outros, e sentirmo-nos felizes com os outros; por um lado porque nos sentimos protegidos, conseguimo-nos proteger, e o mesmo tempo sentimos a felicidade de existir, fazer da vida uma celebração.

G: E isso é possível quando nós criamos a todo o momento. Quando nós criamos um significado às coisas.

P: Mas quando pensamos no Kung Fu normalmente, no Bruce Lee e tal, pensamos mais numa cena física, num conjunto de gestos, de movimentos, normalmente, tem uma conotação física, como é que se passa de uma cena para a outra?

G: Passa-se com a prática, com uma busca profunda, com uma insatisfação...

[Como é que o exercício físico conduz à espiritualidade?]

P: Mas como é que podes dizer que o exercício físico, por exemplo, ajuda a pessoa a sentir-se melhor espiritualmente, mais centrada em si, com mais energia, com mais criatividade?

G: Isso já está tudo ligado. Para já, quando a gente treina, com o exercício físico começa-se a sentir uma coisa muito importante que é a energia. Energia que vai e volta, energia que temos, energia que não temos; temos muita energia ou temos pouca energia, temos uma energia de uma maneira ou temos uma energia de outra, uma energia que é potente mas que não circula, uma energia que circula mas que não é potente. Começamos a tentar atingir o equilíbrio, e esse equilíbrio, em termos energéticos e físico, vai repercutir-se no equilíbrio mental. Equilíbrio mental que tem a ver com o equilíbrio do lado direito e do lado esquerdo. Entre a criatividade e a liberdade (por um lado) e a eficiência (por outro).

P: E isso tudo consegue-se sentir quando se faz o treino e essas cenas?

G: Quando se vai em busca disso... está lá tudo. Tudo está sempre disponível, a questão é só a pessoa procurar...

P: Eu estou a dizer isto porque acho que, na nossa sociedade, há muitas maneiras de procurar, podemos fazer isso através da pintura, da escrita, rezar, meditar, etc. Mas, eu, pessoalmente, é mais a cena do treino. Porque uma pessoa muitas vezes pensa que está concentrada, e quando tenta fazer qualquer coisa percebe imediatamente que não está. É este 'reality check' que eu acho que falta muitas vezes a outras vias. Por exemplo, muitas vezes penso: « agora é que é, agora é que estou verdadeiramente concentrado, agora é que é», e na verdade estou fechado.

G: Estás focalizado, não estás concentrado. Porque é assim, o concentrado, no Ocidente, é tipo 'palas', no Oriente é o oposto (tudo). Mas a verdadeira concentração é a síntese dos dois, o particular e o geral. Ou seja, estás muito focalizado num assunto, mas ao mesmo tempo estás disponível para o que vier. Isso é a verdadeira concentração. Agora isso de ficares focalizado num sítio, depois podes ficar enganado. São os dois tipos de concentração: Yin e Yang.

P: E também pode ser, por um lado ser muito autêntico, fazer exactamente aquilo que se sente, e por outro lado estar muito aberto ao exterior. E isso é muito difícil, é quase como ter duas mentes.

G: É aquela cena que eu te estava a dizer da mente, é por um lado ser livre, fazer o que se quer, mas ao mesmo tempo não deixar nada por fazer.

P: E é aí que eu queria chegar, porque é como se o treino fosse uma espécie de meditação, ou uma meditação...

G: Sim, o treino é a meditação. Por isso é que eu nunca fiz meditação, porque o treino é a suprema meditação. Que depois pressupõe que tudo seja meditação, que tudo o que se faz seja meditação. O treino é a meditação, depois é levar isso para o dia a dia, para que depois da meditação o treino seja mais fácil, e que depois em 24 horas seja quase tudo meditação ou mesmo meditação.

P: E isso é despertar energia...?

G: Isso é o trabalho dos sete chacras: primeiro acordar o físico, ligado à terra, o respeito pela matéria, é muito importante este aspecto. Depois a parte emocional, corresponde ao elemento água. O racional (o terceiro nível) corresponde ao metal. E quando fazes este triângulo – corpo, ciência e arte; corpo, lado direito e lado esquerdo; corpo, razão e emoção –, quando fazes este triângulo perfeito, gera-se uma energia muito poderosa, que é a energia da transcendência, do fogo, de onde vai sair o fénix, que é o quarto. O quarto nível fica a meio caminho, são sete fases. Sete dimensões visíveis e sete dimensões invisíveis. Sete de que se pode falar e sete que é muito difícil explicar. No fundo, a partir da quarta são tudo consequências umas das outras, que é o despertar do corpo mental, do poder mental. É simples, enquanto que uma pessoa anda aqui à procura, e vai à esquina e para, chegando a várias conclusões (como num labirinto, experimentando vários caminhos), o corpo mental é tudo; elevar-se, olhar de cima: 'claro só podia ser, já está'. Isto é chegar ao terceiro chacra, depois há o quarto, o quinto que é o desenvolvimento, o sexto, a plenitude e o sétimo que é tudo isso virado para o todo.

Havia um homem na Índia [Srinivasa Ramanujan] que desde pequeno tinha uma facilidade enorme para resolver problemas matemáticos complexos sem esforço. O tipo de respostas que ele dava não podiam ser demonstradas com as ferramentas tradicionais existentes na altura e muitos dos resultados a que chegou só muito mais tarde vieram a ser compreendidos e demonstrados pela comunidade de matemáticos [embora alguns estivessem errados!].

São os chamados poderes mentais e todos nós temos no nosso caminho esses poderes mentais. É ver aquilo que não pode ser visto, ouvir aquilo que não pode ser ouvido, que está para além dos sentidos. Os poderes extra-sensoriais. Isto está no caminho de toda a gente, se respeitarem o primeiro triângulo. Agora, cada um à sua maneira, aquele era para a matemática, há outros que percebem muito bem o que vai na cabeça dos outros, isso é outro poder. Mas coisas tão corriqueiras como falar com as plantas e coisa assim do género. Não tem nada do outro mundo para quem segue o seu caminho.

Por isso o primeiro triângulo é o mais importante, porque é a base. Quando essa base está bem equilibrada, é o fogo, que desperta os poderes mentais. Mas isto não é assim, primeiro um, depois o dois, depois o três, é menos linear: às vezes sobe e depois desce, e depois volta a subir, e quanto mais desce mais sobe, etc. É esse trabalho, o mais difícil, que pode ser falado; é o trabalho, no fundo, do Kung Fu. O resto já não vale a pena, já não é nada de novo. Por isso não há muito mais a dizer nas fases mais avançadas. Todo o trabalho é nas primeiras três, quatro fases, o resto... as outras são todas uma consequência desse trabalho.

Por isso chega-se a uma altura em que se pergunta: «Qual é o meu Kung Fu?» E o Kung Fu que eu faço é um Kung Fu da minha maneira. Há muitas maneiras de fazer Kung Fu, de se ser especialista em Kung Fu, podia ser competidor, não está no meu caminho, podia ser fazer filmes, também não está no meu caminho,... o meu caminho é a minha transformação que passa pelo contagiar da transformação dos outros, muito forte; e isto com um sentido refinado artístico e extasiado, e pronto; é o meu caminho. E é mais ou menos isto..., nós temos tudo na nossa escola, mas leva muito com isto, porque para ser verdadeiro, sou eu que dirijo a escola, e leva com isto.

[Kung Fu, música e não-reacção]

P: Qual é a relação entre o Kung Fu e a música que fazes?

G: A música para mim foi a primeira meditação. Porque eu entrei no Kung Fu não como meditação mas sim como... Eu sempre gostei muito de aventuras e cowboys e índios e não sei que mais e de repente um dia vejo um herói, que não tinha nada a ver com os outros. Um herói real, estás a ver? Um herói com fraquezas, um herói que não ganhava sempre, que aliás nem sequer estava na onda do ganhar.

P: Claro que é o Caine!

G: Exactamente, e que cada coisa era uma transformação, era sempre aprender qualquer coisa. E ele conseguia fazer coisas extraordinárias na altura certa. E as coisas extraordinárias, não era vencer os outros, eram criar pontes entre as situações. Era a transformação, era a elevação, e isso... isso bateu-me muito forte.

P: Viste os episódios novos do Caine?

G: Não gostei, nem tive pachorra para ver.

P: Nem eu, achei aquilo tão mau!

G: E depois quando comecei a treinar o Kung Fu, na prática, era... pronto... acção... e, por mais que eu soubesse que havia meditação, meditação para mim era parar, ficar concentrado, calminho, não sabia mais nada do que era meditação.

A música. Eu gostava de música 'normal'... pronto, começa-se com os Beatles, mas depois gostei muito de Pink Floyd, essas coisas todas... mas um belo dia ouço uma música na rádio, que era chamada a nova música alemã e que... para mim não considerava aquilo música, era uma espécie de uma viagem, um som, uma alquimia, qualquer coisa que mais tarde eu associei com o que se passava dentro de mim; sobretudo é química, é cores, é energia, é tudo metamorfoses; o que se sente quando se vê uma coisa. Uma pessoa pode estar centrada nas ideias, uma pessoa pode estar centrada em muitas coisas; mas quando está centrada exactamente nessas metamorfoses todas, que é tipo modelações, que eu sou modelado pelo exterior, e que eu modelo o exterior; no fundo essa música é toda modelações, é frequências, oscilações, vibrações... então, quando eu ouvi essa música, a primeira coisa que eu senti foi vontade de me deitar e ficar... foi a minha primeira experiência de meditação, porque... foi quando eu verdadeiramente comecei a abandonar o corpo, mesmo... de uma maneira consciente, foi a primeira meditação.

E de que maneira é que isso tem a ver com o Kung Fu? Isso levou a que eu conseguisse pôr em prática muito mais as coisas que eu sabia que eram verdadeiras, que eram assim, tinha visto no filme, essa cena toda... mas que não é assim às três pancadas. Como é que tu pões em prática apanhar o elefante com a teia da aranha? Não fazeres 'reacção' às coisas? Não fazeres reacções é uma ciência. Um gajo não faz reacção às coisas durante dois, três passos, no passo seguinte já faz reacção. Mesmo que a gente diga que é pacífico e que relaxa, às tantas já não consegue relaxar mais, já não consegue ser mais pacífico. Isto é uma ciência, exige um trabalho muito profundo. Tem a ver com, naquele momento uma pessoa sair do corpo. Sair do corpo para não fazer reacção e para voltar na altura certa. Para isso tem de ter essa capacidade para sair do corpo. E quando é que isso se consegue? É com a meditação. E foi exactamente por aí que começou. Isso ajuda imenso o Kung Fu; agora há muitas meditações, cada um tem de descobrir a sua. Mas a música é uma cena muito poderosa, aliás o Rajneesh diz que a música foi a primeira meditação do ser humano.

P: Eu acho que essa cena da não-reacção, eu pessoalmente vejo-a um bocado como aquele problema do Kung Fu que é do Yin e do Yang. E o Yin é um bocado aceitar tudo. E o Yang é um bocado, não se deixar dobrar. O que são dois movimentos aparentemente contrários, mas que se conjugam quando a pessoa atinge um estado de quase transcendência, ou seja, quando vemos o sentido de tudo para as coisas, percebemos muito bem o que podemos deixar ir e o que é que não podemos deixar ir.

G: Exactamente.

P: E vamos um bocado ao essencial. E acho que a ciência da não-reacção é um bocado a ciência do que é essencial, do que não podemos deixar ir e do que é que não podemos deixar ir.

G: Exactamente.

P: E quando sabemos fazer isso, acabamos por lidar com as situações sem violência, ou pelo menos...

G: Harmoniosamente.

P: ...harmoniosamente, ou pelo menos nunca com uma violência excessiva, e sempre em direcção à não-violência.

G: Exactamente. Pelo menos com uma violência não-excessiva

P: e em direcção à harmonia... é mais isso.

G: Exactamente. É isso mesmo. É isso mesmo.

(risos)

Pois, as coisas teoricamente são fáceis. Se bem que a gente está a fazer sínteses muito sofisticadas... [pausa]

[Quando estamos de olhos fechados, tudo pode ser o nosso inimigo]

P: Para mim aquilo que eu acho mais interessante é um bocado ultrapassar um bocado a imagem que se tem do Kung Fu como marca da guerra e da violência e da defesa no sentido de estarmos com medo dos outros. Porque no fundo eu acho que um dos medos é precisamente começarmos a ver os outros como nossos inimigos. E, no fundo, é rigorosamente quase o oposto disso.

G: Exactamente. Porque é assim, se nós estivermos de olhos fechados, tudo poderá ser o nosso inimigo.

P: E quando estamos com os olhos abertos somos capazes de reconhecer o bom e o mau. Somos capazes de lidar com isso e transformar para melhor.

G: Exactamente. O bom e o mau no fundo existe sempre, mas o bom e o mau altera-se sempre. Nunca se pode dizer onde é que está o bom e onde é que está o mau. Pode-se dizer neste momento, mas se calhar, se não podermos evitar, podemos transformar o mau no bom e está sempre bem. É uma espécie de alquimia. Porque há pessoas que gostam de tudo muito facilitado, muito facilitado, mas no fundo isso não facilita nada às pessoas, porque depois as pessoas não dão valor a nada. Eu não acredito em dificultar a vida das outras pessoas, estás a ver? Como se isso fosse fazer alguma coisa. E também não acredito em facilitar até um extremo muito grande, como se isso fosse fazer alguma coisa pelas pessoas. Eu acho que facilitar está certo, mas tem de ser um facilitar que é dar meios. No fundo para mim facilitar é dar meios às pessoas. Mas também é preciso merecerem esses meios. Porque estar a dar meios se elas não o merecem não vale a pena. Mas dificultar também não acho que faça sentido. Mas, em certas alturas, barrar certas coisas, cortar com certas pessoas e certas situações...

P: Pode ser bom...

G: É, não acho que isso seja dificultar mas acho que é importante. E o Kung Fu tem este aspecto todo, desde o mais básico até ao mais evoluído, que tem a ver com uma necessidade de muitas vezes a gente sentir que pode ripostar mas que, por poder ripostar, acha que há coisas melhores, estás a ver? Se calhar há coisas muito melhores, imagina-se a ripostar, e depois não acha piada aquilo que aconteceu. Imagina que conseguiu, e não acha piada. Se calhar há outras coisas muito melhores. Estás a ver. Enquanto que uma pessoa que não pode ripostar, sempre poderá pensar «se eu pudesse ripostar». E tem a ver um bocadinho com estas coisas todas. E claro, depois há a arte do Kung Fu...

P: Deixa-me só dizer então. Pensas que uma pessoa que não tenha capacidade de ser violenta. Que não tenha força física ou destreza acaba por viver mais a violência, precisamente porque a vê como solução.

G: Não. Porque acumula frustrações, ou pode acumular frustrações. Não estou a dizer, que é. Pode acumular, porque há pessoas que estão noutro percurso completamente diferente. Mas muita gente pode acumular frustrações...

P: Que é a tal cena de ver a violência como possível solução. E aí a violência acaba por ser quase um ideal. Enquanto que a pessoa que é capaz pode achar, eu podia fazer isto, mas, bolas, vou fazer isto para quê. E esta pessoa libertou-se mais da violência como ideal.

G: Exactamente. Mas não diria tanto como ideal, mas como solução, às vezes.

P: Pois... e como ideal também...

G: Pois, isso é um perfil. A violência como ideal é um perfil. Pronto, e depois há os aspectos todos da arte em si. O corpo, a pessoa sente-se bem com o corpo, o corpo está mais flexível, é mais forte, tem outro jeito, essas coisas todas. Depois sente que tem mais capacidades, raciocínio mais claro, mais eficiência em muitos aspectos, na expressão, no que é que se quer, no que é que se faz, nas suas energias para conseguir concretiza coisas. Depois também em termos de contagiar o aspecto mais criativo. O criativo pode-se definir de uma maneira que é: «o não utilitário». Porque há coisas que têm utilidade material e há outras que é pelo devaneio, estás a ver? Por exemplo, uma pessoa quando quer vai por um caminho para chegar rápido. Ou pode ir por outro caminho que não chega tão rápido mas tem outro prazer. Então começa a ter os prazeres mais emocionais, de não ser tão utilitário e achar mais piada às coisas, ser mais sensível ao refinamento das coisas. E tudo isso vai despertar a transcendência. E a transcendência é o sentido da eternidade da vida. Isso é muito importante porque há coisas que não têm solução e a melhor coisa é não ficar afectado e sair fora. E é sair fora que dá um sentido de eternidade às coisas e que depois faz com que, quando voltamos às coisas, não as encontremos tão escuras. Sabes que é tudo tão miraculoso, está tudo tão perto da guerra, mas está tudo tão perto da paz. Sabes, é assim tão... e às tantas começamos a ver que afinal somos capazes de ter muita mão nisso e há quem diga que despertam dimensões em que a gente... há dimensões paralelas a acontecerem... e que consoante a nossa maneira de viajar e a nossa abertura, nós podemos viajar para uma dimensão onde está a haver uma terceira guerra mundial, ou uma dimensão onde está tudo a melhorar. Estás a ver? Tudo isso são as vantagens, ou uma análise, do que é treinar Kung Fu mas isto é muito arrojado, isto é muito psicadélico. Isto não são coisas que chega-se ali à nossa escola e aprende-se. Isto tem a ver com a transformação das pessoas e trabalho.

P: Sim, e depois cada pessoa está ao seu nível. E as pessoas evoluem de maneiras diferente, por percursos diferentes.

G: Exactamente.

P: Interessante. Acho que me escapou aí qualquer coisa acerca do percurso da pessoa, e ir por um percurso mais longo. E ter um tipo de prazer diferente. Acho que escapou-me aí qualquer coisa.

G: O quê?

P: Estavas a dizer que a pessoa às vezes aprendia a ter um prazer diferente. Por exemplo podia não ir por um caminho não tão directo mas por um caminho mais longo. Mas isso, pronto, está um bocado estranho.

G: Pois, há muitos caminhos, e um caminho nem sempre é uma linha recta. Há pessoas que é uma linha recta, há pessoas que é uma linha curva. E há coisas que virão mais tarde a fazer sentido. Não fazem sentido neste momento, não vale a pena estar a... uma coisa é certa, há pessoas que vão ter de se fartar de uma parte para ir para a outra. Isto é como um pinto, quando já não cabe no ovo, parte a casca. Enquanto está lá bem não muda. Elas podem dizer que estão fartas e não sei quê, mas isso é uma certa carência, uma certa necessidade de... porque elas não se fartaram, a questão é esta, quando se fartam e são abandonadas no meio da situação... buum...

P: Explode...

G: Se for a altura certa: páaa (explode)... se não for a altura certa morre, não é?, como o pinto. A situação foi complicada, e ele morreu dentro do ovo. Mas, se o pinto, for a altura certa e ele começar a quebrar a casca, a despertar, ele quebra e sai cá para fora. E tudo tem a ver com a altura certa, as pessoas têm que se fartar com certas coisas, não vale a pena estar a... porque as pessoas dizem isto e dizem aquilo mas no fundo, não é bem isso que querem. Querem dizer: «eu quero, eu quero, eu quero» mas no fundo não querem. Ainda estão noutras dimensões...

 


 


Into a soul absolutely free
From thoughts and emotion,
Even the tiger finds no room
To insert its fierce claws.

One and the same breeze passes
Over the pines of the mountain
And the oak trees in the valley;
And why do these give different notes?

No thinking, no reflecting,
Perfect emptiness;
Yet therein something moves,
Following its own course.

The eye sees it,
But no hands can take hold of it -
The moon in the stream.

Clouds and mists,
They are midair transformations;
Above them eternally shine the sun and the moon.

Victory is for the one,
Even before the combat,
Who has no thought of himself,
Abiding in the no-mind-ness of Great Origin.

A Taoist Priest,
Bruce Lee, The Tao of Jeet Kune Do