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030305 «Troca em Harmonia» – Posfácio à Grande Entrevista ^_^ – Conversas com Guilherme da Luz


Símbolo do Kung Fu TO'A - O Homem Pássaro

Índice temático

  1. O Essencial
  2. De volta ao Kung Fu To'A no Irão
  3. O Kung Fu Flor de Lótus
  4. A concepção Taoista do Kung Fu To'a no Irão
  5. As Teses
  6. As sete fases do Kung Fu To'A - Flor de Lótus
  7. Energia e Analogia
  8. A Sétima Fase
  9. Um Kung Fu da Comunicação...
  10. Liberdade para agir mal
  11. A tese como síntese da evolução pessoal
  12. A competição versus...
  13. ...a cooperação transcendental

 


 

[O Essencial]

Pedro — Quando 'combato' [nos treinos] e as coisas estão bem normalmente é quando eu consigo: sentir-me bem a mim, sentir o meu corpo e expressar-me, por outro lado consigo ver o outro, estar aberto ao outro, e por outro lado há um sentido de ‘amor', que eu não sei bem explicar o que é que é. Pronto, e quando essas três coisas estão a funcionar, aquilo [o combate] normalmente funciona bem.

Guilherme — Tu, o outro e a relação. Quando falamos em amor é num sentido muito amplo que é de relação, relação harmoniosa de ponte, de fluência, de troca... sem dúvida que isso é...

P: Ah... ok, é isso...Interessante... Pois porque falar ou definir o amor, ou esta coisa, porque pode não se chamar de amor...

G: Mas é a palavra certa, podemos não a usar porque ‘amor’ tem sempre aquela conotação...

P: Da dependência, da paixão...

G: Sim... mas a palavra certa é essa. Porque é a perfeita comunicação, deixar fluir, a troca...

P: A troca em harmonia não é?, porque nós muitas vezes...

G: Em harmonia, e a harmonia tem muito a ver connosco, com a nossa relação connosco próprios, isso conta muito, e ao termos a relação connosco é muito fácil ter harmonia com os outros; e é só fazer a ligação, que é a comunicação, o canal de comunicação, e então tudo acontece...

P: E isso também tem a ver com integridade não é...

G: Muito...

P: Porque no fundo a integridade é essa possibilidade de integração...

G: ...de tudo. A relação contigo, isso é que é integridade, e depois vais para o exterior tentando sempre manter essa boa relação contigo próprio dirigido para o exterior. Logo vais ter uma boa relação com o exterior. Porque é impossível viver só em relação com...

P: Mas se calhar podemos dizer que o conceito central é a integridade ou a harmonia.

G: Sim, sempre, e levar essa integridade a níveis muito profundos, expandindo essa integridade.

P: É que é um bocado complicado sabes, porque quando falamos de integridade, muitas vezes pensamos só no interior e isso só não chega... não é?

G: Não chega, porque é assim, quem vive só para a integridade do interior não tem integridade, não pode ter integridade, nem mesmo a integridade do interior. Sem dúvida que tudo começa em nós e às vezes esse processo de começar em nós não é tão linear. Porque há pessoas que para começar em si têm de começar no exterior para depois voltar a si, porque isto não é assim tão linear. Mas a grande harmonia começa de dentro para fora...

P: Ou seja o que estás a dizer é que nós no fundo estamos em relação com o exterior também, não é? Tudo está em ligação com tudo...

G: Exactamente...

P: ...nós para estarmos em harmonia connosco, isso exige automaticamente que estejamos [em harmonia com tudo]...

G: Completamente, mas completamente, não há hipótese [de ser de outra maneira]. E eu aprendi muito isso com o Kung Fu.

[De volta ao Kung Fu To'A no Irão]

P: Eu acho que não ficou muito claro, em relação ao Irão... qual era o ‘timbre’ da escola lá?

G: O timbre???

P: Tipo... porque é assim, por um lado tu dizes assim: que o Mirzaii é um visionário e há até uma expressão [na entrevista anterior] em que tu dizes que ele conseguiu voltar a pôr o Kung Fu em função do homem e não o homem em função do Kung Fu. Mas depois por outro lado aquilo que nós sabemos da escola que havia no Irão, é um pouco isso mas é um pouco o outro lado, o lado mecânico das coisas [repetições de 500 pontapés, etc].

G: Mas tu já sabes que a vida é assim mesmo, nunca nada é cem por cento perfeito, e tu vais buscar aquilo que interessa. Porque é assim, agora já é muito fácil, à distância, as pessoas verem e criticarem, mas na altura se calhar era o melhor que se podia fazer.

P: Mas era só para estabelecer uma relação entre aquilo que se faz hoje no To’a - Flor de Lótus e aquilo que se fazia no Irão. Se se tenta copiar, chegar lá...

G: Não. Mantemos a essência do Kung Fu To’a do Irão e como falámos na altura [na entrevista anterior] havia várias maneiras de exprimir o Kung Fu To'a e nós temos uma maneira muito especial de exprimir o Kung Fu To'a, que no Irão era um segredo só ensinado a algumas pessoas escolhidas, e que o Shahram, quando a trouxe para Portugal, disse que era um segredo incalculável. Que é exactamente a propagação por onda, aquela coisa do chicote, muito diferente do que os Kung Fus To'a normais fazem. Ou seja, mantemos a essência do Kung Fu To'a, e dentro da essência do Kung Fu To'a mantemos um aspecto especial da essência do Kung Fu To'a, que só se aprendia quando se chegava ao final da sétima fase e depois voltava-se a fazer as sete fases daquela maneira. Os outros Kung Fus To'a não têm isso, é tudo muito recto. Mantemos isso, as fases, e depois juntámos coisas novas.

Mantemos o To'a original, o lado bom do To'a original. Mas o To'a original era demasiado pragmático, demasiado racional, demasiado perfeccionista, demasiado tecnicista, vivias para a perfeição da técnica, estás a perceber?, como se fosse a perfeição do teu ser. Ao aperfeiçoar a técnica estás a aperfeiçoar o teu ser. [No To'a original] não havia espaço para o erro, para a espontaneidade, para a experiência, percebes? Logo, tudo tinha que ser feito com andaimes, tudo tinha que ser feito com um auto, como é que se faz isto, vais lutar?, como é que vais lutar? E fazes sempre tudo ao milímetro, tudo ali, combates combinados, tudo ali, ao milímetro. Tipo traçar uma estrada e depois caminhar cada vez mais rápido nessa estrada. Pronto. E o que não havia no Kung Fu To'a é uma coisa que nós incluímos também que é caminhar sem estradas. Damos uma direcção: olha vais assim, unes os pulsos, fazes isto e fazes aquilo e depois a partir daí vai descobrir coisas.

E é esse tipo de coisas que se faz em técnica, tal como improvisações, tal como treinos de espontaneidade, tal como lutas, etc, juntamente com outros aspectos do treino, técnicos, filosóficos e por aí fora, que o To'a original não tinha e que nós temos, e acrescentámos. Ou seja temos um manancial de como fazer isto e como fazer aquilo, que está lá sempre que é preciso. Mas por outro lado as pessoas têm que compreender que faz parte do programa das fases, mas ao mesmo tempo estimulamos as pessoas a serem criativas. Uma delas é agora na demonstração: «O que é que queres fazer? Dentro do que já fizemos, dentro do que não fizemos, imagina.» Tudo isso pôs o Kung Fu To'a como uma verdadeira arte no sentido criativo, em que as pessoas têm que dar o significado a ela, não é ela que já está feita e as pessoas têm que [copiar]...

P: Quase que se pode dizer que é um estilo que evolui para o não estilo, para a ausência de estilo.

G: Sim, mas tendo como base o estilo. Ou seja, há pessoas que são assim, que é o não estilo, que não têm identidade, mas nós continuamos com a nossa identidade. Só que é muito abrangente, por isso é que é a Flor de Lótus, abre-se, floresce e... recebe.

P: Mas é uma identidade individual ou é uma identidade do To'a? Ou seja, o que se cultiva

G: Existe uma identidade do To'a, em função da identidade individual, e as pessoas quando vêm para o Kung Fu sentem que a identidade do To'a tem a ver com a sua identidade individual. E por isso o To'a é uma identidade muito abrangente que existe, o To'a é assim. E uma coisa é certa, as pessoas quando vêm ao To'a, o To'a é To'a, não se compara com mais nenhum Kung Fu, e quando vão ao Lótus dizem «ah, é mais parecido com os chineses» e o To'a não é parecido com nada. O To'a é o To'a.

[O Kung Fu Flor de Lótus]

P: Isto agora não tem muito a ver com o To'a mas pronto... no outro Kung Fu que também ensinas, no Flor de Lótus, isso já não se vê tanto pois não? Uma...

G: Identidade tão forte?

P: Sim.

G: Não. Porque não é estilo, o outro é um método. O outro não é estilo, talvez um dia possa ser um estilo, ainda está a crescer, ainda tem uns quantos anos, não tem ambição de ser estilo, é um método que cresceu. Já te expliquei como é que ele surgiu, e vai continuando, talvez um dia ele seja estilo, mas eu não estou interessado em fazer estilos.

P: Não, não me estou a lembrar... Como é que ele surgiu?

G: Foi um convite que eu tive de um centro natural O Panda, na altura na parte de cima tinha um ginásio, e convidaram-me para dar Kung Fu. Eu fui lá, mas fazer ali Kung Fu, ali a saltar naquela coisa ... e eu sabia que havia pessoas que gostavam de treinar Kung Fu mas achavam o Kung Fu To'a muito violento. Então eu disse-lhes que daria um Kung Fu terapêutico, com respirações, com meditação, com...

P: Um Kung Fu interno...

G: Sim, um Kung Fu interno... só que as pessoas que foram aparecendo, aos poucos estavam muito abertas para um Kung Fu mais externo, não tanto para um Kung Fu terapêutico. Pessoas de outros Kung Fus, do Kick Boxing, etc. Começaram a aparecer lá pessoas de outros Kung Fus, e então este Kung Fu foi crescendo com as pessoas que iam aparecendo. E então fui compilando o que eu achava melhor, porque já tinha treinado outros Kung Fus antes do To'a. O Flor de Lótus não tem a ver com o To'a. O To'a - Flor de Lótus é que tem a ver com aquilo. Por isso é que é To'a - Flor de Lótus. O Flor de Lótus não tem a ver com o To'a. O Flor de Lótus é assim um monte de coisas interessantes que eu aprendi de outros Kung Fus, que eu treinei antes do To'a.

E então comecei a compilar, dentro daquilo que eu achava que as pessoas iam gostar, e não sei quê, umas sequências e depois por aí fui construindo um método de acordo com o feedback que as pessoas davam e com a receptividade das pessoas. E é assim que tem acontecido o Flor de Lótus, não sei aonde é que vai parar e é isso que eu também acho piada, quem sabe um dia pode ser um estilo, neste momento é um método...

[A concepção Taoista do To'a no Irão]

P: Eu só estou a achar estranho porque tu distingues três origens principais para o Kung Fu na China: o Budismo, o Confucionismo e o Taoismo... E nessa descrição que tu fizeste [na entrevista anterior] parecia que o Tao era para menos pessoas, a última conversa que se podia ter, menos sofrida, menos forçada, menos ligada a um estilo rígido. E nesse sentido eu imaginei que quanto melhor fosse um estilo, ou melhor, quanto mais se aproximasse do Taoismo, menos definido fosse, ou menos identidade tivesse.

G: Estás a falar no To'a?

P: Sim, no To'a - Flor de Lótus.

G: Pois, é assim, uma coisa é o To'a que existe com a identidade do To'a que já vem da tradição que é embrenhado de Budismo Zen, os Sufis, e muito científico, lógico, etc. E outra coisa sou eu. E eu estou lá, não tenho a essência do Kung Fu To'a todo, aquele manancial todo, mas uso e exprimo de acordo com a minha natureza que é mais Taoista. Percebes? Se fores a outro sítio não é assim.

P: E é isso que no fundo propões às pessoas também, não é? Que cada um pegue naquilo como um instrumento e utilize para a sua própria natureza...

G: Exactamente. E, na prática, as escolas que saem da nossa escola, vão seguir a linha que quiserem. Há um mínimo para cumprir, mas depois seguem a natureza da pessoa que está lá à frente dela. Eu não estou lá a dizer... Onde eu estou é assim, sou o dirigente, puxo mais para este lado, mas noutros sítios pode ser mais uma onde cristã, outra qualquer... não tem nada a ver, cada um tem que ser verdadeiro consigo próprio. Mas preservar – porque senão não pode ser chamado Kung Fu To'a, ou outras coisas – a cultura do estilo.

P: Mas o Flor de Lótus já se aproxima mais disso não é?

G: É. Porque é aquilo que eu sinto, é feito daquilo que eu sinto, o que eu sinto que é melhor e que tem a ver comigo.

P: Ok. Mas mesmo assim, depois desta conversa, não sei se vai dar para fazer a ligação com aquilo que nós tínhamos escrito. Por exemplo, tu agora disseste, em relação ao To'a do Irão, que era bom mas não era tão bom. Mas na entrevista está lá escrito aquela cena de ser em função do homem e não o homem em função...

G: Sim, sim... Mas olha uma coisa é a concepção, outra coisa é a prática.

P: Ah! ok, ao nível da concepção era as coisas em função do homem e não o homem em função da técnica.

G: E é bem verdade, bem verdade. A concepção do To'a é muito assim...

P: Mas o que é que chamas de concepção, a filosofia e coisas assim?

G: Tudo. Desde a postura, os movimentos, o respeito pelos movimentos, pela ergonomia. Porque aquilo é uma síntese do oriente com o ocidente. Ou seja, há coisas muito antigas, muito naturais lá do Oriente, que se preservaram. E há coisas muito avançadas, que vieram do moderno conhecimento científico.

P: Ok, estou a perceber. Ou seja, o To'a mesmo enquanto arte, enquanto conjunto de técnicas, posições, etc...

G: E isso é extraordinário, tudo aquilo que foi criado, a fina ciência, o conhecimento à volta daquilo, a ideologia, e tudo isso...

[As Teses]

P: Mas isso nós temos pouco, não é?, por exemplo as teses não sobreviveram, ou se sobreviveram não sabemos onde é que estão e não existe um conjunto de escritos, por exemplo pelo Mirzaii...

G: Pois não, fazemos nós! (risos) Mas então, espera aí, não é preciso assim tanto. Estão ali as linhas, e agora vais buscar. Agora é assim, nunca ninguém absorve o conhecimento total, porque há coisas que não interessam, senão as pessoas ficavam uma biblioteca ambulante.

P: O que eu quero dizer é que o retracto que nós podemos fazer daquilo que aconteceu no Irão é um retracto muito esquemático, quer dizer, sabemos as linhas principais mas não sabemos exactamente, nem sequer com muito pormenores, quase nada. Por exemplo, como é que eram os treinos nas escolas, por exemplo, eu acho muito estranho que as teses não estejam aí, acho... Porque é assim, uma pessoa faz uma tese que é a síntese da vida, de toda a aprendizagem que fez...

G: Porque é que não fazes essa pergunta aos Kung Fu To'as...

P: de agora?...

G: esses da Internet....

P: Mas eu não vejo lá nenhum que tenha aprendido no Irão, é só pessoal assim dos EUA e noutros sítios.

G: Mas esse pessoal dos EUA, eles vieram do Irão.

P: Vieram?!

G: Vieram! Então, fugiu tudo, do Irão [ver entrevista anterior].

P: Então, é uma boa ideia. Assim que eu encontrar alguém...

G: Dizes que ouviste falar em teses quando se acabava a última fase, perguntas se sabem de alguma coisa, ou se sabem quem é que pode informar sobre essas teses, se estão disponíveis, ou livros de Kung Fu To'a. Eu sei que houve, no Irão [escritos pelo Mirzaii], que nunca foram traduzidos, ou se há por acaso alguma tradução, ou maior documentação acerca do que aconteceu lá. Eu acho que sim.

P: Posso dizer até que estamos a tentar reconstituir a história um bocado, e tal...

G: Então não?! Acho que sim. Eu adorava ter isso aqui pronto.

P: Eu por exemplo gostava muito, se houver teses e for o meu tipo, eu gostava de ver, gostava mesmo de ler.

G: Eu também gostava, por muitas razões, até para ver até que ponto aquelas pessoas chegaram.

[As sete fases do Kung Fu To'A - Flor de Lótus]

G: Este Kung Fu tem sete fases, começa pela primeira fase e a primeira fase tem a ver com o trabalho físico, e logo a parte de entrada neste Kung Fu é muito física.

P: É um Kung Fu externo...

G: É um Kung Fu externo sem dúvida; ou seja, é um Kung Fu em que trabalhas de fora para dentro, até chegar ao ponto de dentro para fora, até chegar a uma altura onde já não é mais dentro nem fora, é uno; porque as coisas têm que vir sempre de dentro para fora, não é? Só que às vezes o de dentro para fora tem que ter um estímulo exterior, ou uma obrigação, uma coisa visível, cumprir, ter qualquer coisa realizado, os músculos feitos, o trabalho feito, isso tudo leva-nos ao nosso interior. E este Kung Fu sem dúvida que é um trabalho externo, e o primeiro trabalho externo é o físico. Nós somos como sete camadas – abres esse livro [Tantra, do Rajneesh] – e vais ver que é como a cebola em que trabalhamos a primeira, trabalhamos a segunda, por aí fora, até chegarmos ao nosso ser.

P: E também há sete fases...

G: Sim, sete fases, exactamente...

P: Mas a primeira fase [sequência de movimentos] não é mais física que as outras...

G: A primeira fase é a fase mais física, ou melhor o primeiro trabalho é o trabalho mais físico.

P: Por isso é que eu estava a perguntar, como há sete fases podia ser que houvesse sete trabalhos...

G: Há, são sete trabalhos, o que não quer dizer... o último trabalho manifesta o físico, mas não é centrado no físico. Os trabalhos mais avançados (5ª fase e coisas assim) não podem ser feitos com a mesma atitude com que se faz a primeira fase. Porque se não, não se consegue, porque um é em termos de físico, em termos de matéria, o outro tem de ser, pelo contrário, centrado noutro centro, que é o centro mental, o centro «nós não somos o corpo, o corpo é um perfeito instrumento». Então o primeiro trabalho é um trabalho físico, é o trabalho de moldar o corpo, é o trabalho de sentir o que é que é o corpo, quando é que ele está em pleno, quando é que ele está em vazio, o que é que nos faz andar, a prática, o que é que nos faz ter energia, etc. Então é a estrutura de manifestar o Kung Fu, que é o físico. E as técnicas também têm a ver com isso, são técnicas com frequência muito menor, ou seja têm menos subtilezas, menos pormenores por unidade de tempo do que as outras, ou seja, muito menos complexas. E pronto, é o trabalho de estrutura, como se fosse uma luta assim um bocado primária, estás a ver?, de tipo agarrar num pau e vir com ele com toda a força e bater e não o esgrimir. Pronto, então nesta fase as nossas técnicas têm a ver com isso, é uma energia terra, que tem a ver com os animais mais pesados tal como os touros, os búfalos, os tigres e outros assim. E pronto, desenvolvemos principalmente o uso do físico.

[Energia e Analogia]

P: Estás a dizer, se estou a perceber bem, que o objectivo é conseguirmos, para atingir o último objectivo que é ter consciência de tudo e de todas as fases, temos primeiro de ter consciência do físico, primeiro começamos por aí.

G: É, por isso é que é externo, de fora para dentro.

P: Porque é que há pessoas que escolhem o externo?

G: Porque é assim, o externo é o mais óbvio, se a gente não tem consciência cá de dentro, vai cá falar em coisas... «que não existem?»...

P: Então as pessoas que já têm mais consciência dessas coisas vão mais para o interno?

G: Vão mais para o interno. Agora isto é um ponto de partida, é uma coisa abstracta, uma coisa mental. Ninguém pode dizer que é uma coisa completamente externa ou completamente interna.

P: E na prática, as pessoas que vão para o Kung Fu podem sentir coisas diferentes... porque eu por exemplo quando comecei o Anatova, aquilo que me mexeu mais foi a coisa da energia.

G: Pois, exactamente, e na nossa escola isso são pontos de partida, são referências, já o Bruce Lee dizia «interno e externo não existe, existe só um Kung Fu, não existe interno nem externo». Há uma altura certa para embarcar no corpo, há uma altura certa para embarcar na energia, há uma altura certa para embarcar nos feelings do exterior, há uma altura certa para embarcar no teu esquema, na tua concepção, há uma altura certa para tudo.

P: Mas então porque é que nós não podemos mudar a ordem das fases?

G: Porque é uma espécie de... tem a ver com a teoria tibetana dos sete chacras que se começam a trabalhar como um pagode e com um pagode não se trabalha de cima para baixo, trabalha-se de baixo para cima, percebes? Só que este trabalho já tem ligação com o mais alto, quando fazes o andar de baixo, já estás a pensar que tem que aguentar os outros todos. Ou seja, não fazemos isto com o sentido de matéria, quando trabalhamos a primeira fase não fazemos com o sentido de ‘isto é que é o resultado’, fazemos já com os feelings de algo mais avançado, por isso é que é muito importante os mais avançados darem as aulas, os mestres e não sei quê. Porque não estão a fazer as pessoas primárias, estão a fazer as pessoas ‘a acordar o animal’, não é ‘cultivar o animal’, é ‘a acordar o animal’. E há que saber acordá-lo com gradualidade e coisas assim, já em função da última fase. E neste processo todo, já há pessoas que estão noutras fases mais avançadas em termos de consciência. Mas têm que trabalhar ali a primeira fase que é para poderem manifestar o Kung Fu, que é um trabalho assim mais fácil. Enquanto que há pessoas que têm que fazer o Kung Fu para se elevar, há outras que já estão num certo nível de elevação mas vêm manifestar essa elevação no Kung Fu, que no fundo as ajuda a manifestar essa elevação noutros sítios.

P: Ou seja, no aspecto da concretização...

G: No aspecto da concretização. No Kung Fu quem trabalha o aspecto físico ajuda também a concretizar no dia-a-dia, no que quiser, porque é a matéria...

P: E daí a questão também da flexibilidade e coisas do estilo, físicas...

G: Sim, sim, sim... Tudo o que é trabalho físico tem a ver com isso. Então a primeira fase é isso. Por isso o programa é: uma condição física especial para a primeira fase, uma técnica que é o Anatova especial para a primeira fase, e uma parte de dois a dois, e uma parte com uma certa espontaneidade que tem a ver com a primeira fase. E assim sucessivamente, as outras fases a mesma coisa.

A segunda fase é quando nos começamos mais a mover com o que nos rodeia, a segunda fase é a emoção, o que tem a ver com o movimento, não tanto com o vertical da terra, mas mais com o fluir das coisas. Também tem uma técnica, também tem uma condição física, também tem isso, só que aqui... isto é um pagode, ou seja, o pagode de início só tem a primeira parte, e depois tem a primeira e a segunda, depois tem a primeira, a segunda e a terceira. Ou seja, não são trabalhos separados, é trabalho acumulado.

P: Diz-me uma coisa, essa parte da emoção já tem a ver mais com a relação com o outro, ou também...

G: Já, já tem muito mais a ver com a relação com o outro

P: O fluir, já... tem de haver alguma coisa...

G: Já tem muito mais a ver [a segunda fase] com subtilezas. Por isso o dois a dois, na primeira fase tem que ter regras muito mais rígidas, do que com o passar do tempo. Exactamente porque ainda é um trabalho assim de quantidade e de matéria, com pouca vida. Porque é a água que vai trazer exactamente a vida às coisas.

P: Mas a segunda fase... eu estou a perguntar isto porque nós normalmente ligamos a segunda fase à emoção, não é? Ao fluir e à emoção também. E a emoção tem a ver muito com a nossa relação com os outros.

G: Não... a emoção, como no inglês [e no francês é-motion] vem de motion/movimento –> emotion/motion. Tem a ver com o movimentar das coisas, nada é estático, e nós movemo-nos com as coisas, as coisas movem-nos e nós movemos as coisas, é tudo assim. Que engloba aquilo que estás a dizer, a relação com o outro, mas já é muito mais, é o movimento.

P: A relação com o exterior talvez...

G: Sim, e principalmente começamos a ver que nós, isto aqui que somos nós [o corpo e isso] começa a haver mais coisas: nós não somos o corpo, nós não somos a emoção, estás a ver? É que há coisas aqui... Pronto. O três é a razão, e assim sucessivamente. Porque depois também há uma condição física especial para cada fase que ajuda a preparar a expressão dessa fase, porque a condição física é para preparar a expressão. Uma técnica, que ajuda a exprimir e que ajuda a expressar isso, e que ajuda a criar condições para essa expressão. Porque isto é tudo uma pescadinha de rabo na boca: tudo prepara e ajuda. E também a parte espontânea. Todas as fases vão tendo sempre isso [preparação física, técnica e espontaneidade]. A terceira fase é a razão, a quarta é a transcendência, é o fogo, é o queimar para renascer, fogo, uma coisa que fica tão intensa que queima, que morre para depois renascer do fogo...

P: O Fénix...

G: Então a quarta é o meio caminho, entre o um, dois, três e o cinco, seis, sete. Não é interno nem externo, é a ponte, é as duas coisas, é o positivo e o negativo, é o [explosão]. Então a partir daí entra-se no negativo que é o mental, o silêncio, e logo aí entra-se numa fase que é muito puxada, que é a quinta e é só à base de pontapés. E aí a gente tem de mostrar que não é o corpo mesmo, de uma maneira muito... quando se quer. Nós não sermos o corpo não é rejeitar o corpo, é ter a possibilidade de: quando nós queremos somos totais com o corpo, quando não queremos, desaparecemos.

P: Mas porque é que dizes isso, porque se fôssemos o corpo não conseguíamos fazer aquilo?

G: É muito puxada... é uma técnica muito puxada, não pode ser feita com o exterior do corpo, tem de ser feita com o interior. Tem que se ter já um bom nível de desligar-se do corpo que aquilo é um cansaço danado. Depois tens a sexta que é muito leve e tem uns timings e uns contrastes de tempos muito subtis e parece que descobre-se coisas dentro de coisas. Depois há a sétima que já tem a ver com uma preparação para ligação com o todo, com a transcendência, total, cósmica. E... pronto, no fundo cada uma tem os seus trabalhos. Agora é assim, as escolas também têm fases, e a nossa escola tem a sexta fase. Logo é óbvio que, como nós não podemos fazer aulas separadas para fases, e às vezes até era bom – era bom as duas coisas, aulas separadas para fases e aulas assim como nós temos [mistas] –, mas como não é possível, por causa das compatibilidades de uns poderem e outros não poderem (já experimentámos e não deu), acontece é que às vezes há pessoas da primeira fase que estão a levar com conhecimentos e ensinamentos de coisas muito subtis e vice-versa e até é giro porque no fundo as pessoas não estão principalmente em fase nenhuma, estás a ver? E há pessoas que entram lá e estão já prontas para receber ensinamentos muito mais avançados e em pouco tempo fazem as técnicas muito bem feitas, e depois eu digo assim «ah, fazes em pouco tempo bem feito, então ainda podes fazer muito melhor». Ou seja, tudo é bom, as pessoas que levam o seu tempo a fazer as fases, é porque é mesmo assim, as pessoas que fazem em pouco tempo, ainda podem fazer muito melhor. Porque isto tem a ver com a pessoa, com muita coisa.

Pronto, falámos em fases... agora isto tem muito que se lhe diga, todo esta trabalho físico tem muitos pormenores. Depois no final temos a tese, já falámos sobre a tese [na entrevista anterior], porque a pessoa ao longo do tempo vai-se encontrando no Kung Fu, e vai vendo quais são as áreas em que lhe interessa mais trabalhar. Porque estas sete fases têm a ver com sete consciências, sete tipos de homens, sete tipos de pessoas, estás a ver?, e a pessoa escolhe aquele trabalho que tem a ver mais consigo. Que em princípio teria a ver também com a sua vida, do dia a dia, e depois especializa esse trabalho naquilo que lhe interessa mais, e depois há pessoas mais filosóficas, outras mais racionais, quando falo de filosófico é no sentido metafísico, do saber, e quando falo do racional é mais no aspecto do conhecimento, mais...

P: científico...

G: científico, para o corpo, para a mente; outros são capazes de ter um conhecimento mais poético, que tem a ver com as emoções... Cada um exprime aquilo que tem a ver mais consigo, com o seu trabalho; a uns interessa-lhes mais a relação com os outros, a outros a relação consigo próprio, a outros a relação com o mundo, a outros com o além (risos), a outros... sei lá... Cada um depois dá o ênfase que quer.

[A Sétima Fase]

P: Diz-me uma coisa: porque é que ainda não há ninguém a fazer a sétima fase?

G: Porque tudo é na altura certa, e não foi a altura certa. Aliás, acho que todos nós temos um crédito de técnicas para a frente que ainda não as temos só porque [nos falta aperfeiçoar ??] técnicas mais para trás. Porque no fundo mantemos a essência deste Kung Fu: ser muito exigente na técnica, muito perfeccionista. Só que de uma maneira diferente, enquanto eles [diziam]: «se não estiver perfeito não passas para a frente», nós não: «passa para a frente» mas acrescentamos, «não te esqueças: perfeição».

P: Então a sétima fase é diferente das outras de alguma forma?

G: É, é! Enquanto que a sexta tem a ver com este chacra [um pouco acima do ponto médio entre os olhos], a ponte entre os dois, o interior e o exterior, a sétima já nem se fala nessa diferença, ou seja, do um para o dois e para o todo, mas sem essa consciência que tem a ver com... é sentir o todo por exemplo, é... não ver completamente a diferença entre quando uma pessoa luta, ou uma pessoa faz qualquer coisa, entre a defesa e o ataque por exemplo. Por exemplo, na luta, a gente não faz mais diferença entre o ataque e a defesa, não faz mais diferença clara entre tu e o outro, somos um, completamente; é matéria, energia, mente, corpo é só um, é todo o dia a dia, estás com um sentido total. O que é que é a vida, o que é que é a morte, o que é que é essas coisas todas, e... vive-se no todo... essa coisa toda...

P: Como é que uma técnica física pode corresponder a isso?

G: Como é que uma técnica física pode corresponder...

P: Sim, pode levar a descobrir isso, ou pode ser uma porta para isso, ou pode trabalhar isso...

G: É a integração. Quando consegues integrar de uma tal maneira em que já não falas em integrar – integrar é no sexto – quando já está integrado, estas duas coisas que eu te falei [interior e exterior].

P: É que, pelo que dizes, parece que quase nem podia haver técnica, parece que tudo seria isso, não é? Qualquer coisa que uma pessoa fizesse seria isso.

G: Olha, uma coisa típica da sétima fase, que é o topo de todos os Kung Fus, que é o Kung Fu macaco. O Kung Fu macaco o que é que faz, usa todas as coisas que estão do contra e principalmente o que está no contra, de uma maneira criativa. Quer isto dizer, usa o desequilíbrio, usa imenso o desequilíbrio, para dar força, para dar tudo. Ou seja, ele busca o desequilíbrio, estás a ver, ele busca mesmo a instabilidade, para estar bem com tudo. Para ganhar estabilidade, estás a ver? Porque essa é a única maneira de ter estabilidade para coisas muito sofisticadas. Que é o Kung Fu bébado, que é um Kung Fu assim, estás a ver... (risos)

P: Aquilo que eu te ia perguntar há bocado era o seguinte: porque nós falamos dessas fases todas e dizemos...

G: Só um parênteses, esta coisa de explicar estas fases todas é muito complexo, e eu acho que o que eu te disse até agora destas fases todas, principalmente a partir da quarta, é um trabalho muito complexo de explicar. E eu acho que fiz o melhor possível, porque é muito complexo explicar estas histórias todas, das fases mais avançadas.

P: Pois porque até à terceira é relativamente simples,

G: É...

P: Depois a partir daí...

G: Porque são mais óbvias, as outras são... é uma questão de experiência, é uma questão de sensibilidade, e às vezes tem que andar a pensar que tipo de

P: Analogia...

G: Analogia, exactamente. E depois também porque é uma coisa que eu também estou a trabalhar. Não estou pleno completamente.

P: Pois, a minha pergunta era um bocado nesse sentido, porque as três primeiras fases, que era aquilo que estávamos a falar há bocado [antes da entrevista]... por exemplo, eu sinto-me bem quando [1] consigo sentir-me bem a mim próprio, o meu interior, quando tenho consciência daquilo que sinto naquele momento; [2] quando tenho consciência do outro, e [3] consigo ligar isso tudo através dessa relação ou do amor, como tínhamos falado. Mas isso corresponde às três primeiras fases ou é o trabalho de todas as fases?

G: Isso é em todas as fases. Fazes isso na primeira fase, mas depois quando entras num... num outro território, já não consegues fazer tão bem, tens de fazer tudo outra vez. Depois outro [etc]... quando tu fazes, na sétima fase, isso, significa que fazes em todo o lado. Ou pelo menos tens capacidade de fazer em todo o lado. Porque não te esqueças que a gente está a cooperar, está na mesma sala [na mesma onda], ter que fazer isso quando se está contra... [é muito diferente]

P: Ok, então já estou a perceber melhor, ou seja, a ligação entre o interior e o exterior, no fundo a meditação, não é?, que é o estado em que se consegue ter consciência de tudo [interior, exterior e relação]... mas isso tem a ver com a sétima fase!?

G: Isto tem a ver com todas. Agora, há coisas que, meditação para uns é ficar assim, treinar bem o corpo, ficar quieto, e pronto, isso é uma espécie de meditação. Mas agora, como fazer isso em sítios muita complexos, em sítios do nosso inconsciente, em sítios muito estranhos? Em vastidões muito grandes, em níveis muito mais subtis... uma coisa é fazer com o corpo, outra coisa é fazer com o corpo todos a colaborar, outra coisa é fazer com as emoções, estás a ver?, quando já há emoções esquisitas pelo meio. Uma coisa é o corpo, aquele é grande, aquele é pequeno, aquele é assim, aquele é assado, faz mais devagar, faz mais forte; depois começa a meter emoções pelo meio..., quando já vêm ideias pré-concebidas e elaboradas, e outros esquemas... estás a ver?, quando já vêm coisas que têm a ver com magia negra, ou com coisas do oculto... já não é assim tão fácil, fazer isso com gente assim... para isso acontecer... por exemplo a cena da magia negra, é muito perigosa, porque é assim, se uma pessoa se fecha, pode-se fechar completamente; mas é preciso ter cuidado com o fechar-se completamente, porque a gente tem que comunicar, depois um dia comunica, abre a porta, aquilo entra tudo por ali dentro, porque a gente não pode ter portas fechadas. A gente tem que ter tudo escancarado. Só que não pode ser receptivo, o que se chama um cofre aberto, tem que ‘irradiar’ algo. Então é isso: há muita gente que fecha as portas, e é céptico e não sei quê, mas um dia que as portas se abram aquilo entra por ali adentro, ou porque morre alguém, ou por uma associação qualquer. E há que ter as portas abertas e irradiar, e então a magia negra nunca acontece.

P: O que é que nunca acontece?

G: Entrar, lá dentro.

P: Nunca acontece?

G: Não, nunca acontece. Quando tu irradias a magia negra nunca acontece...

P: Ah, quando irradias...

G: Se uma pessoa não irradia, e tem uma porta muito bem pintadinha, muito bonitinha, (risos) um dia que a porta, porque as portas não podem estar sempre fechadas, há uma altura em que isso abre, e entra por ali tudo dentro, coisas se calhar acerca da morte, acerca da perda, muita coisa, que entra tudo por ali adentro, que é maus olhados e não sei quê... o que é que é aquilo? Existe e não existe... Não existe no sentido em que a maior parte das pessoas fala, mas existe no sentido em que, são influências negativas, são vibrações.

[Um Kung Fu da Comunicação...]

G: Então, tudo isto é sempre vibrar em diferentes dimensões... A última fase tem a ver com todo o Cosmos. Todo o Cosmos estás a ver? Com Tudo. Em que se perde aquelas coisas fortes que é: família, os amigos, o que se gosta, essas coisinhas, como lidar com isso.

P: Isso é um bocado complicado (risos)...

G: Por isso é que eu não queria estar a falar sobre essas coisas.

P: Já há muito pouca gente que faz isso...

G: É dos últimos trabalhos, quem faz isso não está muito na ribalta porque a ribalta não quer saber destes assuntos, e porque são muito difíceis de explicar à ribalta e... porque tudo vem na altura certa, portanto não é preciso estar a falar dessas coisas, e isso é das últimas fases. Só para te dizer que esse trabalho não é só um trabalho físico, é um trabalho também psíquico. E o Kung Fu não é só andar para aqui a dizer que qualquer pessoa decora as sete fases em pouco tempo e coiso... isto não é só físico, isto é um trabalho existencial, por isso nós estamos com um granda crédito. Para já o pessoal, pelos que eles dizem “é pá, há tanta técnica”, eu sinto, mas eles também sentem que há tanta coisa para melhorar, para aprofundar, temos tanto para trabalhar, tanto para trabalhar... o que conta é a qualidade, não a quantidade, o que conta é a profundidade do que fazemos. Um ketô, sim o ketô está bonito, mas um ketô tem que ser um ketô, não pode ser um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, movimentos e partes, até chegar até lá. Na última fase, um tem que ser: entre o partir e o chegar não há atraso nenhum. É tipo Lucky Luke: é mais rápido que a sombra!

Agora isto é que tem valor e não termos um grande catálogo, que é técnicas daqui, técnicas dali e estarmos naquilo que o Rajneesh diz: cada vez se sabe mais e mais sobre menos e menos. Isto também é verdade, e nós temos muita técnica, este Kung Fu é vastíssimo em termos de técnica, e o mais importante nisto tudo não é apenas o momento de aperfeiçoar, é usar isto: O que é que fazemos com este manancial todo? Estás a ver? O que é que fazemos com as técnicas todas que existem... E acho que, como a gente falou – o mais importante é aquela relação, do amor, etc. – no fundo é isso: é que isto seja um instrumento e um meio para a comunicação, porque é o que já falámos da outra vez [na primeira entrevista], o Kung Fu para o nosso tempo é o Kung Fu de comunicação. Antigamente era o Kung Fu de transformação, de revolução, mais de fogo, Kung Fu disto ou daquilo, o Kung Fu do conhecimento, o Kung Fu de muita coisa, e agora há um Kung Fu da comunicação: é uma época de partilha e o êxtase neste momento é esse. Antigamente o objectivo seria alcançar um objectivo e transformar, tirar os maus e pôr os bons (sorriso), ou de ter segredos ou conhecimento, o Tao ou coisa assim, agora não, agora será um Kung Fu de partilha, de comunicação, um Kung Fu da era de aquário, um Kung Fu universalista.

[Liberdade para agir mal]

P: Mas, por aquilo que estás a dizer parece quase que aquilo que faz com que haja ‘maus’ é a falta de comunicação. É quase o bloqueio de qualquer coisa, o que não queremos sentir. Mas nem sempre é assim, não é? Eu estava a pensar no Senhor dos Aneis [do Tolkien], aquele filme, porque é perfeitamente possível imaginares que alguém queira tirar a tua liberdade, que alguém queira usar-se de ti para os seus próprios fins, para se servir da tua energia, para absorver a tua energia, para montes de coisas...

G: Exactamente, exacto.

P: E nesse caso, há os bons e os maus, não é? Ou seja, os bons são aqueles que não se deixam submeter...

G: Vamos lá a ver, não, não acho isso. Eu diria mais assim, ninguém é bom, ninguém é mau cem por cento; numa situação tem que se ver o que é que é bom e o que é que é mau. O que é bom é quem tem uma visão mais abrangente, o que é mau é uma visão mais limitada. Essas pessoas que querem tirar a liberdade aos outros para seu proveito são ignorantes porque não vêm que há outras maneiras que são verdadeiramente boas [eficazes] porque se eles vissem eles conseguiam [escolher a maneira mais eficaz para atingir o seu objectivo, o seu proveito].

P: Eu não sei, sabes, eu tenho algumas dúvidas sobre isso, eu acho que isso existe e é o mais vulgar, de longe, é o mais comum, e acho que existe uma coisa que é mesmo tu saberes que existe uma maneira melhor e que isso te daria mais prazer, mais consciência, mais essas coisas todas, só que mesmo assim tu simplesmente desististe de viver, não queres... tomaste a opção...

G: Ah, mas é claro! Mas é que isto não é só uma questão de saber, é um saber existencial, é um saber que transborda. É assim, tu podes saber...

P: Mas tu não achas que é possível optar por não querer?

G: Por não querer?

P: Sim, por não querer essas coisas todas boas que nós...

G: Não. Não é possível, não.

P: (rio-me)

G: Não é possível. Mas eu entendo o que estás a dizer, porque é assim, há pessoas que topam e não vão, mas há pessoas que topam e vão, só que é assim: esse topar é um topar ainda... porque é assim, nós já experimentámos que isto [roubar, por exemplo] faz mal e continuamos a fazer, a gente sabe que faz mal, mas continuamos a fazer. Mas enquanto não tem a experiência íntima, de dentro, de que faz mal, a gente não larga aquilo. É isso que acontece com essas pessoas. Elas sabem que está mal, mas não fazem. E depois normalmente quando pedes para dizerem qualquer coisa, elas justificam-se: “porque roubaram-me a mim também roubo, tenho que roubar.” Estás a ver?...

P: Isso são as pessoas que estão ‘no caminho’ não é?

G: Hã?

P: Bem, isto se calhar não é assim uma coisa muito importante, mas isso são as pessoas que estão no caminho...

G: Toda a gente está no caminho!

P: Mas eu acho que existe outra situação bastante diferente, que é diferente do que tu estás a dizer, em que a pessoa sabe, a pessoa tem tudo, todos os meios, e pode ir. Não se trata de estar agarrada a uma situação e não sei quê, trata-se de a pessoa decidir: não quero aquilo: o êxtase, etc. Quer morrer por exemplo. Só que, em vez de querer morrer pode querer fazer outras coisas, pode querer levar outras pessoas com ela, etc...

G: Sem dúvida, mas para já há uma coisa, há pessoas que têm uma dificuldade muito grande, têm deficiências no hardware, mas aí isso é óbvio, não é? Níveis de química no corpo e no cérebro e quando há mesmo dificuldades, aí é como uma máquina avariada e tu não vais dizer que é máquina é má; está avariada. Pronto. Agora, as outras que tu disseste, que estão mais conscientes, isto agora é – não te vou dizer que é verdade, é uma questão de constatação – é assim: elas se puderem, elas estavam de outra maneira. Elas podem dizer, «ai eu não quero saber do êxtase». Não quero saber do êxtase uma treta, elas não conseguem é ter êxtase. E desistem.

Ou então o êxtase passa por outro sítio. O caminho para o êxtase passa por voltar atrás. Há tanta coisa... agora é assim, porque é que eu digo isto? É a minha experiência, estás a ver, porque é assim, nunca vi ninguém que não fosse sensível ao próximo degrau. Estás a ver? Tu pões na altura certa, a pessoa está perdida, o degrau certo para elas evoluírem, elas vão. Agora o problema é que por muitas razões há pessoas que o próximo degrau é muito alto, e estão ali à rasca. Ou porque se atrasaram, acharam que era só subir, ou porque isto, ou porque aquilo. Mas há uma coisa, se tu conseguires pôr um degrauzinho, essas pessoas vão logo, isso é que faz-me tirar a certeza existencial que toda a gente quer isso. Agora [para saber] como é que elas reagem a isso, não vale a pena ouvir tudo o que é que elas dizem, é mais a tua observação. Porque as pessoas são muito orgulhosas: “ah não!, estou-me borrifando para isto”...

P: [interrompendo] Tu não te consegues imaginar a ti próprio a dizer que não queres subir o próximo degrau, e podendo subir?

G: Imagino, imagino sim. Numa daquelas reacções que as pessoas têm normalmente. Isso sim.

P: Em consciência não.

G: É em consciência, sim.

P: Não, mas eu estou a dizer, tendo consciência das coisas, portanto ‘em consciência’, não dizes, não te consegues imaginar a dizer, que não queres...

G: Não quero subir aquele degrau ou um degrau de evolução?

P: Qualquer degrau! Tipo um degrau que possas subir, uma coisa...

G: Por exemplo, o degrau que significa a evolução...

P: Sim...

G: Podes ter a certeza que não digo.

P: Não és capaz de imaginar isso?

G: Não, não existe. Isso não existe.

P: (rio-me)

G: Isso não existe. Andar para trás não existe. Depois do Big Bang nunca mais nada voltou para trás. E mesmo quando voltar para trás é um voltar para ir para a frente. Isto tudo tem um sentido e é isso que é importante. A não ser que a gente não queira dar sentido.

P: Pois.

G: Sim, mas aí é a liberdade que nós temos, de escolher...

P: Exacto, é isso...

G: Ah, sim, sim...

P: Era disso que eu estava a falar.

G: Ah, mas isso é... pronto. Existe a liberdade de escolher e de nós darmos significado às coisas. Mas eu também te digo uma coisa elas têm um significado muito forte, muito oculto, muito forte, muito apelativo. Que é aquilo a que as pessoas chamam Deus e de Conforto e de Luz.

P: Mas tens a liberdade de negar isso?...

G: Tens, tens a liberdade de negar isso. Tens a liberdade de negar isso. Mas, ao negar isso... pronto, isso acontece muito com aquele pessoal que nega a civilização, nega o conforto, nega tudo. Porquê? Porque não tem energia, deu-se mal com o sistema, punks que andam por aí a viajar pelo mundo. Mas quando se chega a uma certa idade, ele ama tudo, e lá chegamos todos.

P: Não, mas é que eu acho que essa liberdade existe realmente, tu podes tomar essa decisão qualquer que seja o teu grau de consciência...

G: Ah, mas isso podes...

P: e qualquer que seja a razão, até pode não haver razão nenhuma. É simples... por exemplo, pode ser uma vontade de mais liberdade, porque nós quando vemos mais sentido nas coisas, há certas coisas que... como é que hei de explicar, há uma certa individualidade que se perde. Isto talvez não seja muito claro, mas tipo, há medida que vais vendo que toda a gente é igual a ti e que todas as coisas têm um sentido e já tinham um sentido desde há não sei quanto tempo, etc, etc, e tudo começa a ‘encaixar-se’ digamos assim, numa certa forma de ser, de existir, tu podes começar a ver: ‘bolas, mas eu preferia que não houvesse nada disto, porque assim era mais livre.’ Se fosse tudo a zeros, eu podia fazer o que quisesse. Tudo era igual, estás a ver. E então tu podes rejeitar essa ordem, essa estrutura, que não é uma estrutura física, não é uma estrutura rígida, mas podes rejeitar isso, porque preferes o nada...

G: Sim, isso acontece muito, acontece muito. Alias, é a única maneira de... mas isso faz parte, é importante. Isso é porque há gente que se obcecou muito por uma ilusão e por uma perfeição, aí sim.

P: Uma forma específica de perfeição.

G: Sim. Por isso depois também é normal largar isso, mas depois, no fundo, no fundo, como eu te estava a dizer, um ‘não’ é, no sentido mais amplo, um bocado ‘sim’. Porque as pessoas fazem isso mesmo em função da evolução. Ao rejeitar a evolução, é como se fosse uma evolução. Agora isso é constatações existenciais, porque no fundo, uma coisa é o estar, o exterior, outra coisa é lá no fundo. Quando a gente medita no nosso fundo, no fundo dos outros, vemos esse aspecto muito dentro de todos nós. Tu vês que é assim: ele está a dizer isto, por causa disto, mas... muda-lhe aquilo, ele diria logo outra coisa. Agora, tu não vês que, quando se é inconsciente, quando se está ainda num processo inconsciente, tu mudas os cenários, mudas o ambiente à volta e tu estás a ver, aquela pessoa está a dizer aquilo, aquela pessoa está assim por causa deste ambiente. Muda-lhe este ambiente, começas a ver logo: ela a mudar tudo, tudo, tudo. Tudo, quer dizer, o mais inconsciente... e depois, o que é que fica nestas mudanças todas? E é isso.

P: Pois...

G: Mas isso já está muito para além do Kung Fu ‘técnico’.

[A tese como síntese da evolução pessoal]

P: Pois, e era isso que eu queria perguntar, em relação ao Kung Fu ‘técnico’, a maneira de evoluir das pessoas, dentro do Kung Fu... nós no fundo estamos a dizer: ok, um é interno e outro é externo. Mas, também dissemos da outra vez que falámos, que as técnicas também davam respostas consoante as perguntas que nós lhes fazíamos...

G: Exacto...

P: Ou seja, a evolução que se faz dentro do Kung Fu em cada uma das fases, e, dentro do Kung Fu, depende muito das perguntas que as pessoas colocam, ou do tipo de coisas que as pessoas querem obter.

G: Claro, claro.

P: Também é possível chegar à sexta fase e... cada pessoa chega à sexta fase de uma maneira completamente diferente. E obteve respostas e...

G: Ah, mas claro, isso depois vai ser o seu output na tese.

P: Mas ainda ninguém fez a tese... (risos)

G: Oh pá, mas não anda ninguém a pressionar ninguém. Às vezes digo ao pessoal: «então no final, sabem que no nosso Kung Fu tiramos a tese, aqui os avançados, já estão na sexta fase, já têm andado a pensar na tese, não têm?» E eles ...

P: (risos)

G: É pá é que... sei lá, tudo vai na altura certa, estás a ver?, a tese não é uma coisa que tenha que ser preparada debaixo de coisas; eu estou a olhar para eles e eles estão..., mas eles estão a fazer a tese, estás a ver? Um belo dia... [já está]. Não é preciso... está tudo a crescer. Quanto mais solto... quanto menos coisas obrigar... o essencial é que tem que lá estar, estás a ver? Praticar, praticar e comunicar. Aquele aspecto de paixão, com a comunicação, com a arte, com eles, com os outros. Depois o savoir-faire é aquela coisa que a gente vai fazendo todos os dias uma coisinha.

P: Outra coisa que eu te queria perguntar que era o seguinte. Este Kung Fu [To'a - Flor de Lótus] tem uma linha muito Taoista?

G: Não... A aula é que tem uma linha muito assim. O To'a original, quando veio para cá não era assim, e ele podia também ser To'a - Flor de Lótus e não ser assim. Porque há escolas de To'a - Flor de Lótus que não são completamente assim.

[A competição versus...]

G: Pronto, sobre a competição é assim, para já uma coisa, Kung Fus há muitos, não é? Há pessoas que o Kung Fu está embrenhado com uma cultura Taoista, budista; principalmente aquela parte budista de não comparar, não faz sentido nenhum comparar pessoas. Tal como se vais comparar uma abóbora com um bambu. Não tem nada a ver, não é?

P: Comparar no sentido de julgar, de dizer ‘melhor / pior’ ?

G: Exactamente. Comparar no sentido definitivo de julgar mesmo... Não faz sentido nenhum...

P: Faz todo o sentido discriminar [no sentido de distinguir, ver as diferenças, sem julgar] não é?

G: Exactamente. Se bem que muitos Kung Fus fazem isso, desculpam-se com o Ocidente que gosta muito disso...

P: Estás a falar de hierarquias,

G: Não, não, não...

P: de dizer nós somos os melhores...

G: ...estou a falar de competições, de lutas para ver quem é que ganha, de campeonatos, todo esse aspecto de...

P: Ou seja, quase de uma imposição de um em relação ao outro...

G: Exactamente. Apesar de o Kung Fu estar embrenhado com essas filosofias, que dissolvem completamente esse conceito, ou seja – não é que são contra – não faz sentido nenhum. Isso é a filosofia, ou seja os Kung Fus em si estão embrenhados nesta filosofia; mas na prática não quer dizer que seja assim. Na prática, há competições de Kung Fu por todo o lado, os Kung Fu têm hierarquias muito fortes, as técnicas parecem muito bonitas, mas quando vão lutar, há uma tentativa de [forçar]... isso faz parte do ser humano, há uma coisa que é normal que haja um bocadinho e que a gente vai dissolvendo e outra coisa que é completamente assumida. Que é completamente abominável. E a maior parte dos Kung Fus tem um bocado de influência de códigos de moralidade confucionistas que vêm o Kung Fu para a luta, obediência aos mais velhos, respeito aos mais velhos e coisas assim, tipo mandamentos. E nesses Kung Fus os símbolos são animais, garras, espadas, tudo cenas guerreiras e onde é preciso ter, como na tropa, um código...

P: Tipo vencer ou morrer...

G: Vencer ou morrer, obedecer... é como se pegassem numa arma... Em que treinar Kung Fu é como pegar numa arma.

P: Ou seja, pegar numa arma para dominar alguém.

G: Sim, é como se fosse um poder. Simplesmente é um poder em função do exterior. No nosso Kung Fu, cujos símbolos são símbolos da transcendência: o fénix, o homem-pássaro, da união do material com o espiritual, etc, não faz mesmo nenhum sentido a comparação, nenhum sentido. Mesmo as nossas próprias graduações dizem respeito a cada pessoa, dizem respeito à pessoa em si. Não dizem respeito a um grupo, ou seja, não há exames, nunca se pode dizer que uma pessoa que tem um shawl é igual [a outra que tem] ou diferente [de outra que não tem]. Isso não tem nada a ver, nadinha. Diz respeito ao trabalho que ele fez. Há uma quantidade de trabalho que aquela pessoa fez e é isso que significa o shawl. E tudo acontece ao natural, a gente sabe muito bem que quando está a treinar a luta é tudo muito relativo, nós andamos na mó de cima e na mó de baixo. Às vezes andamos na mó de cima e levamos tudo à frente. Outras vezes estamos na mó de baixo e somos um bocadinho vulneráveis. Sabemos que, por exemplo, se formos para uma situação mesmo real, que nos toca mesmo, um ou outro, que é muito valente, pode ficar acobardado e nós podemos ver uma energia não se sabe de aonde, são tudo coisas que... que fazem com que não faça sentido nenhum a comparação.

Podia estar a dizer-te aqui montes de coisas [que mostrassem] porque é que não faz sentido nenhum a comparação, principalmente quando a pessoa tenta [assumir]. Porque uma coisa é haver estes pedacinhos em que as pessoas competem um bocadinho, que são naturais e que a gente vai dissolvendo. Outra coisa é assumir, e nisso é que é a grande crítica que o Kung Fu To'a faz. É assumir, como certos Kung Fus fazem, como certas artes fazem. Porque isso é perigoso. Que é a subtil origem de toda a desarmonia do mundo. Que no fundo é um produto do medo. E o medo no fundo é o produto da falta de amor. (risos) Por isso, falta de amor, medo, comparação, divisão, inconsciência.

Pronto, e no nosso Kung Fu isso não faz sentido nenhum... porque uma coisa é a gente, às vezes, picar-se um bocadinho, mais rápido, ou querer ganhar, ou assim, porque é normal, é só um bocadinho; e dói, e são medos, e a gente diz que perde e não sei quê... outra coisa é assumir isso. Isso é uma coisa que se faz muito e que é muito perigosa. Assumir isso é muito perigoso. É isto que faz com que este mundo seja assim, é as pessoas terem medo de ficar para trás, terem medo de serem seguidas, «bate ou batem-te», essas coisas todas...

[... a cooperação transcendental]

P: Desculpa interromper-te, mas daí que a imagem deste Kung Fu não seja tanto vais fazer Kung Fu para seres melhor que os outros ou para seres mais forte que os outros, ou para conseguires ‘impor-te’, não é por isso. No fundo é uma questão de comunicação, vais para conseguires compreender melhor...

G: Para já vamos falar sobre o sentido destes símbolos todos de que nós falámos, que são símbolos transcendentais, sobre a expansão da consciência, uma coisa que se nota logo e que é assim: tu para expandires a consciência e para expandires o teu ser tens que cooperar. Tens que cooperar nesta coisa, cooperar contigo e cooperar com o exterior.

P: Cooperar é o quê, comunicar?

G: É. Cooperar é ‘serve e serás servido’, ‘ajuda e serás ajudado’, ‘dá e receberás’...

P: Ou seja, estar em harmonia com o exterior...

G: Sim, e nunca querer apenas receber ou apenas dar, que são esses os dois extremos, os altruístas e os egoístas. Nem um nem o outro. E muito menos o dar para receber, que é os mentais. Dar simplesmente...

P: Mas é assim, se tu já conheces a «lei da harmonia» já sabes que se deres vais receber!!!

G: Sim, mas para isso então esqueces esta conversa, vais esquecer esta conversa. Isto tudo é só para cozinhares um textozinho (risos).

Porque é que nós não achamos nada interessante a competição? Podemos até achar que a competição é saudável, mas muito pouca gente fica mais saudável com a competição. São muito poucas as pessoas em que não causa frustração a competição. Porque viver em função de quem é que ganha não interessa, o que interessa é o momento em si. Ou seja, o momento em que, aconteça o que acontecer, aquele momento é que conta.

E isso é que é o sucesso das coisas, mesmo numa luta, e em tudo o resto, é o ‘a pessoa dar-se bem’, percebes? Não é a história do ganhar, é ‘dar-se bem’. E chegamos a uma altura que dar-se bem, para mim é, dar-me bem eu, e ajudar o outro a dar-se bem. Em suma esse dar-se bem é a tal coisa de que tu falavas: é mais problema dele. Mas eu englobo a mim e ao outro, para nos darmos bem, e isso é importante. E quando uma pessoa engloba, em vez de pensar em derrubar o outro ou ganhar, etc, pensa em dar-se bem e ajudar o outro a dar-se bem, é esse o objectivo do Kung Fu, a mensagem do Kung Fu.

Podemos pensar que isso é uma cenazinha tipo religiosa / kitsch, mas não tem nada a ver com isso, é muito colorido, é muito ‘psicadélico’. Não é assim uma onda de: ‘agora não compitam... vá lá!!’, para todos se darem bem. Não. É muito rico, é muito vasto, é em busca disso que as pessoas fazem competição, a competição dá-lhes cor, dá-lhes emoção. Se não tiverem isso não há emoção. [Daí o] futebol e essas coisas todas. Agora, é possível ter muito mais emoção na cooperação. Mas muito, mesmo muito mais emoção.

Agora tem que ser uma cooperação ‘transcendental’. Que aprofunda e engloba muita coisa, engloba viajar à escuridão do nosso ser. Porque é isso é que dá cor. Que é viajar ao escuro [aos nossos medos, à inconsciência], estás a ver? As pessoas normalmente fogem de si e tentam ter esse contraste no exterior, e esse contraste no exterior é um bocado perigoso. No interior é que tem que estar esse contraste: ou seja, quando uma pessoa está a falar com o exterior, está a ver o exterior, e está ao mesmo tempo a ver aquele confronto com o interior, e está a ter uma medida de compreensão consigo próprio, mas algo de contrastante, algo de confronto (pode ser até confronto), isso dá muita cor, muita cor. E é por isso que nós na nossa aula falamos em cooperação. Nunca dizemos ‘luta de um contra o outro’, mas de ‘luta de um com o outro’. É diferente.

E esse aspecto é mesmo muito importante. Agora, é uma ciência, não é fácil, mas é gratificante em muitos aspectos. Em termos de harmonia e principalmente em termos de emoção e de ‘cor’, de psicadélico, no sentido de expansão e de... A outra competição é... é os bons, e os maus, hoje ganha um, amanhã ganha outro [ou, hoje ganho a um, amanhã ganho a outro, mas os problemas mantêm-se, a dificuldade, o medo de perder, permanece]. Umas vezes o Benfica outras vezes o Porto... Agora esta não, esta é muito psicadélica, é transcendental; que é o Fénix que morre para renascer, está sempre a morrer e sempre a renascer, sempre a morrer e sempre a renascer, é uma coisa... muito, muito forte.

E isto é uma coisa muito radical. A maior parte [das pessoas] vivem de maneira real e evolutiva, mas desarmoniosa; depois aparecem uns quantos a dizer uns mandamentos, mas esses mandamentos muitas vezes não têm cor nenhuma, porque é o tipo crianças: «olha, tu vais para ali, e tu vais para ali, e dêem-se bem, etc, etc, dá-lhe um beijinho, etc.» E as pessoas dão um beijinho mas muita frustradas, percebes? Porque há manifestações pacifistas e não sei que mais [que são coisas úteis], mas no fundo, ninguém toca lá naquele sítio. Porque este sítio não se toca em grupo. (risos) Este sítio toca-se individualmente.

Depois, por acaso, uma pessoa quando toca neste sítio individualmente começa a encontrar à sua volta muita gente como ele. Não é em grupo que se vai, é individualmente. O grupo pode ajudar o individual, que é do exterior para o interior. Mas depois a verdadeira coisa é do interior para o exterior. E esta mensagem é muito importante, da não competição. Também não ser contra a competição e, se calhar pior que tudo, é preferível a competição do que uma certa harmoniazinha...

P: Falsa...

G: Falsa. Porque faz parte de nós essa agressividade e essa energia, só que tem de ser bem canalizada. Porque a grande viagem, a grande emoção não é partir para a guerra e andar a disputar assim... mas é a viagem no desconhecido, na agnosia e incognoscível fonte de todo o mistério. (risos)