contos - poesia - e-mail

030307 Epílogo: Dois pontos pendentes em relação a Troca em Harmonia (030305)


Símbolo do Kung Fu TO'A - O Homem Pássaro

Dois pontos:

  1. Às voltas com a questão da Liberdade:
    - A Liberdade para agir mal, parte II
    -
  2. O Conhecimento q.b.

 

 

 

 

 

 

 


 

[Às voltas com a questão da Liberdade:
– A liberdade para agir mal, parte II]

Pedro — Duas questões centrais: primeiro, lembras-te que falámos da liberdade e tu disseste que "andar para trás não existe", não é?

Guilherme — Em termos de ser não existe... ou seja, todas as pessoas, tudo aquilo que atingem é delas. Podem numa certa altura exprimir mas noutra altura não conseguir exprimir. Mas nunca deixam de ter essa experiência. Essa experiência, essa riqueza, é delas. Se elas alcançaram essa experiência, é sempre delas, podem é não ter a capacidade de exprimir. Faço uma analogia com o Kung Fu: uma pessoa atinge uma certa fase, um certo conhecimento, um certo feeling, um certo conhecimento do seu ser. Deixa de treinar, não consegue exprimir isso, mas continua com essa experiência. E essa é uma das razões pelas quais as pessoas, quando deixam de treinar, não estão tão em forma, elas continuam a valer o shawl, que é o trabalho que elas fizeram, continuam a valer sempre o shawl. E não têm que tirar o shawl, mesmo que estejam perras completamente não têm que tirar o shawl. Porque elas têm um conhecimento que faz com que elas sejam sempre muito diferentes..., ou seja não têm que repetir, não são iguais a uma pessoa que começa de novo, não são iguais ao que elas eram quando começaram no início, estás a ver?, é qualquer coisa que já perceberam, já passaram por ali. Podem é não expressar agora essa fase...

P: Exacto, mas disseste também que sempre que as pessoas podiam subir o degrauzinho, sempre que se punha lá o degrauzinho para elas subirem, e que era o degrau da evolução, as pessoas subiam. Não é?

G: Eu lembro-me de termos falado nisso, 'que toda a gente está a fim de evoluir'. Não há ninguém que não queira evoluir. Por diferentes caminhos, etc. Agora é assim, há muitas maneiras de evoluir, há pessoas que têm de andar para trás, etc. Agora, no fundo, no fundo, se compreenderes o processo onde elas estão e souberes pôr o degrau – porque isto não é assim tão óbvio – todas as pessoas estão a fim de evoluir...

P: Pois, mas aí é que eu queria chegar... isso não faz parecer como se as pessoas fossem máquinas, no sentido em que elas só não vão porque não conseguem e se tu puseres o degrau elas automaticamente fazem isto, e não têm opção de não o fazerem...

G: Bem o que acontece é que é assim, isto não é assim tão óbvio, todas as pessoas têm o seu caminho e este pôr o degrau muitas vezes é retirar o degrau ou pôr o degrau mais abaixo, estás a ver? E é assim, seja o que for, isto não pode acontecer: tu pores o degrau sempre às pessoas e as pessoas estarem sempre a caminhar dependentes. As pessoas têm que andar por si próprias. Estava só a dizer é que toda a gente quando quer evoluir, ou aonde ela quiser ir, se vier um degrauzinho, e o degrauzinho muitas vezes tem que vir de um sítio..., porque às vezes as pessoas estão relutantes, pode vir até um degrau, mas como não gostam daquela pessoa ou daquele sistema, não aceitam aquele degrau. Mas se o degrau vier de uma coisa que 'lhes assente', elas dão o passo. Toda a gente dá o passo.

P: Então deixa-me fazer a pergunta de outra maneira: tu dizes que não existe 'andar para trás'...

G: Em termos existenciais, de consciência, não. Agora, em termos de expressão de consciência, sim.

P: Tudo bem, mas estamos a falar ao nível do ser, da consciência em si. Mas mesmo aí a pessoa pode andar para a frente a várias velocidades, não existe só uma?!

G: Não, não existe só uma. No início é...

P: Mas não há aí uma decisão da pessoa? Poder andar mais rápido ou mais devagar, ou ficar parada, ou querer ficar parada!

G: Há uma decisão sim, e essa decisão tem a ver com a experiência da pessoa.

P: Está bem [desesperado]! temos concepções diferentes...

G: ...

P: Temos concepções diferentes.

G: Sabes é que é assim, há duas evoluções, a evolução consciente e a inconsciente. A evolução inconsciente tem a ver com as circunstâncias basicamente do exterior. Há pessoas que evoluem com as dificuldades, com as guerras, com as crises, com isto, com aquilo, etc. A maior parte das pessoas são assim. E depois, há outras que simplesmente têm uma evolução consciente. Dizem: 'é pá já chega, quero coisas novas.' Nós somos um bocadinho das duas coisas. Nós somos um bocadinho das duas situações. Todos nós podemos estar conscientemente... mas se vier uma crise era a peça que faltava para a gente pôr em marcha...

P: Sim, mas tu dizes uma coisa que eu gostei muito na primeira entrevista que é: "aquilo que há mais próximo do divino é a criatividade", não é?

G: Sim...

P: E a criatividade parece qualquer coisa que implica liberdade, quer dizer, que não é do estilo: 'ok, existe um caminho mas nós não conseguimos lá chegar, agora se tu abrires o caminho a pessoa vai'. Eu acho que o Ser não é, nós não somos isso.

G: Nós não somos o quê?

P: Nós não somos essencialmente a busca, a procura, ou o desejo se quiseres, ou seja a necessidade. Nós não somos a necessidade, ou seja, aquela coisa de ter o objectivo já traçado, o caminho já traçado e agora ser só tirar os obstáculos [...] Pelo contrário, nós somos criadores, criadores no verdadeiro sentido da palavra: do nada geramos qualquer coisa. E isso é...

G: Isso é a liberdade...

P: É a liberdade, e eu acho que é um bocado incompatível com aquilo que estás a dizer...

G: de...

P: de pôr o degrauzinho e depois a pessoa vai. Não, eu acho que é assim: se a pessoa é verdadeiramente criativa, a pessoa pode ir, pode fazer outra coisa qualquer, pode não coisas, pode pegar no degrau e transformar noutra coisa, estás a ver?, não está limitado.

G: Sim, tu tens razão o que estávamos a falar, do degrauzinho, era a questão de «toda a gente está a fim de crescer, de evoluir, de expandir, de criar, de dar significado às coisas..., ou não?» Há umas que podem dizer que não, mas toda a gente, se puseres o degrauzinho certo, ela vai. Era só para provar esse aspecto, estás a ver? Agora, o resto é o que estás a dizer. Mas aquela história do degrauzinho não era para esse sítio.

P: Ok, ok. Então quer dizer que a pessoa não pode andar para trás, mas quando vai andar para a frente não tem só um caminho, tem milhares, ou até infinitos.

G: Claro, claro. O degrauzinho era exactamente o que lhe faz sentido naquele momento, para ela. Não é tu pores o degrauzinho para condicionares. O degrauzinho é uma ciência. O degrauzinho é o que tem a ver com ela no momento. E que pode ser ou para aqui, ou para ali, ou para além, ou para cima, ou para baixo...

P: Então, mas isso é sempre uma abertura de possibilidades!?

G: É! Mas claro, claro! Mas a gente quando fala disto é sempre com um sentido [de expansão] (risos)... não é nunca com um sentido limitador.

[O conhecimento q.b.]

P: Queria também colocar-te uma outra questão: tu falas muitas vezes de astrologia, de coisas mais esotéricas, e também de coisas mais exotéricas, mais ligadas ao físico, à anatomia, etc. Ora nós já tínhamos falado uma vez na, digamos assim, "verdade do conhecimento", porque há uma ideia de que tudo é ilusão e de que nós utilizamos o conhecimento apenas como um meio para atingir a liberdade. Não é? Ou um estado de amor...

G: Sim, um estado de êxtase, um estado de mistério, de maravilha...

P: Pronto, e eu gostava que falasses um bocado sobre isso...

G: O conhecimento?

P: Sim, até que ponto é que o conhecimento é ilusório ou não é ilusório, até que ponto é que... quando falamos da astrologia, até que ponto é que lhe podemos dar uma realidade objectiva, válida para toda a gente ou se é só uma maneira de... ou se é só o degrauzinho, para algumas pessoas...

G: Não. Todo o conhecimento é assim, seja ele qual for. Seja mais exotérico ou mais esotérico, mais científico ou menos científico...

P: Todo o conhecimento é assim como?...

G: É muito relativo, quer isto dizer: conheces aquela história do Zen? No início a montanha é a montanha e o rio é o rio. Ou seja, o primeiro contacto que nós temos com as coisas é muito intuitivo e 'sem mente'. Olhamos para as coisas e aquilo é aquilo. É o que nós sentimos, é como conseguimos imitar, a primeira abordagem. Depois vem alguém dizer-nos que a montanha não é a montanha, o rio não é o rio, ou seja, aquela concepção que nós temos não é bem assim. A montanha é feita disto que é feito daquilo, o rio é feito daquilo, etc. E isso vai-nos dar uma maior possibilidade de agir sobre esse real. No início temos assim uma certa possibilidade ainda assim limitada, na primeira abordagem. Na segunda abordagem, quando dizemos 'não é assim' é para ser assado, temos uma maior amplitude de acção...

P: de manipulação?...

G: ...de manipulação e capacidade de agir sobre o real. Mas, cuidado com essa manipulação, isso tem de ser feito, sempre, em função da nossa relação amorosa, e não de uma relação em que procuramos dominar as coisas.

E a relação amorosa tem sempre aquela história de ir e deixar vir. Tem sempre de deixar qualquer coisa de mistério. Deixar qualquer coisa de mistério e não querer dominar e catalogar e tá pronto, finish. Porque com isso perdemos o nosso prazer, a nossa vida e o verdadeiro conhecimento. E o verdadeiro conhecimento é o último estágio, que é quando o rio volta a ser rio, a montanha volta a ser montanha, da mesma maneira como era no início, quando éramos criança, mas já com o conhecimento q.b., o conhecimento que nos permite ter uma relação inocente com as coisas, mas por outro lado, que é também o conhecimento que nos permite proteger essa relação. Porque a primeira relação que é inocente, é uma relação vulnerável. Mas com o conhecimento, fica mais... percebemos as manhas, ficamos mais sabedores, mas perdemos a relação inocente com as coisas. E perdemos as coisas. E então há que voltar no fundo àquela máxima, como o Rajneesh diz, que é: «o sábio é aquele que aprendeu todas as manhas e não é manhoso.» Há que aprender as manhas mas não ser manhoso. O sábio é aquele que sabe as manhas, mas prefere ser como a criança. E então, todo o conhecimento, seja ele qual for, pertence ao segundo estágio, que é 'a montanha deixa de ser montanha', que é: dar-te ferramentas para agir sobre o real. De modo a que tenhas possibilidade de integrá-lo, de catalogá-lo, de agir sobre ele, etc. Mas cuidado que isso é uma coisa Yang, é uma coisa de dominar. De agir sobre. E o verdadeiro conhecimento é nós sermos maravilhados como uma criança, mas não de uma maneira ingénua, mas sim de uma maneira inocente. A inocência tem de se manter sempre, mas não a ingenuidade da ignorância, percebes? Pronto, o que eu queria dizer com ingenuidade é ignorância. Não ser ignorante. Por isso todos esses conhecimentos são bons. Agora tem de ser q.b. Tem de ser q.b. e o que faz sentido...