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"Dentro da casa ainda permanece um rapaz [...].
Nas divisões mudas irrompem as fotografias,
emolduradas e sempre limpas, da família.
Rastos de luz extinta."
Adama
Estava um dia primaveril e o Lúcio, gozando o sol da manhã, andava à cata de morangos para saborear ao fim da tarde. «Que pena a D. Solidão não gostar de morangos» pensou. E era verdade, a D. Solidão era uma pessoa mais do bolo de bolacha e da batata frita. Era, aliás, um pouco anafada, mas muito feliz. O seu corpo grande era sempre ocasião de festa. Tivera muitos filhos e tinha muita família, estava sempre rodeada de pessoas. Todas elas a acarinhavam muito e ela sentia-se feliz por isso. Vivia para as pessoas e muitas dessas pessoas viviam para ela. Era um poço de felicidade.
Hoje o Lúcio e a D. Solidão iriam ter um encontro. O Lúcio gostava muito dela e das imagens que evocava. Havia algo naqueles tons de sépia, como se tudo pertencesse ao impossível ou ao passado, que não era fácil encontrar na natureza, estonteante de vida e novidade. E ela estava quase a chegar.
O Lúcio não era um tipo de grandes comidas, lá arranjou uns nacos de pão com manteiga e um chá quente. Era o melhor que podia fazer. Mas o seu entusiasmo foi aumentando cada vez mais à medida que sentia a D. Solidão a aproximar-se. Viu-a por fim ao fim da estrada, e o seu coração encheu-se de alegria. Foi a correr até ela!
« — Olá D. Solidão, como estás?»
« — Olá meu querido Lúcio? que bom ver-te. Como tens andado?»
« — Muito bem», respondeu o Lúcio, «e agora melhor ainda, que te vejo novamente, já foi há tanto tempo que nos encontrámos!»
« — Sim, é verdade! Deixa-me ver-te! Olhar bem para ti!»
O encontro dos olhares era sempre espetacular entre o Lúcio e a D. Solidão. Era como se dois mundos muito distantes se encontrassem. Toda a trama de intrigas e ligações, amores e desamores, vontades e desilusões, de que se compunha a vida da D. Solidão, vinham agora ter com o Lúcio, em mil imagens e cores, mas sempre um pouco misturadas com o sépia e as outras cores do coração faminto.
Nos olhos da Solidão o Lúcio viu, num só instante, muito mais do que seria possível dizer aqui. Mas foi apenas um instante demorado, que passou, depois foram ambos para casa e puseram-se a conversar à volta do pão e do chá.
« — Como é possível viveres aqui tão sozinho e triste querido Lúcio?» dizia a D. Solidão, como era aliás seu costume.
É preciso dizer que o Lúcio adorava a D. Solidão, com aquela adoração forte que se dedica às mães e às amantes. Ele bebia cada palavra sua e, claro que entendia o que ela queria dizer. Ele de facto estava sozinho, não havia ninguém por perto, todos aqueles momentos de toque, de risos, de partilha e cumplicidade, estavam ausentes, 24 horas por dia, 7 dias por semana, com uma ou outra exceção ocasional, como esta. Ao olhar da Solidão não havia outra alternativa: estava separado de tudo e todos.
« — Sim, é verdade», respondeu Lúcio, «e tenho uma certa saudade desses tempos em que estávamos tão juntos que parecíamos um!»
« — Ainda vais a tempo Lúcio, ainda podes ter filhos. Arranja uma mulher... tem uma família, ou morrerás sozinho.»
« — Sim, eu sei.» Respondeu Lúcio com uma voz triste.
« — Pensa bem: eu sei que é um sacrifício cuidar de crianças, mudar-lhes as fraldas, estar com elas durante a noite, acompanhá-las sempre. Mas quem somos nós sem os outros? O que seria a nossa vida sem esse sacrifício, tão nobre, para que outros possam também gozar a vida? O que podemos fazer de mais valioso do que dedicarmos a nossa vida a outros seres?»
« — Sim, eu sei.» Respondeu novamente Lúcio cabisbaixo.
« — Sabes, mas não fazes nada para mudar!»
« — Eu gosto de viver assim, compreendo que me vejas sozinho. Gostava de te mostrar que não é assim quando não estás cá. Que tudo muda. Mas claro, para isso seria preciso tu não estares cá! E eu Adoro que estejas cá! Eu adoro-te como adoro o céu e o mar! Por isso quero partilhar contigo o que posso partilhar. E de facto é só a dor de nada ter do que tu tens. Pois é verdade que não tenho a alegria do abraço, a paixão do carinho que se demora, os olhares ternos e constantes, as amizades permanentes e úteis em tempos de aflição. O sentir-me útil. Toda essa rede que nos faz vibrar e continuar e nos dá suporte quando caímos. Tenho-te a ti somente... como se fosses o meu álbum de retratos de tempos passados...»
« — Lúcio! que tristeza. Viveste tanta coisa bonita connosco. Ainda podes viver outras! A Vida está a acontecer. Continua connosco!»
« — Mas agora todos têm filhos e afazeres. Cada um vive no seu castelo familiar, enredado em mil aventuras, absorvido por mil e uma coisas. Não têm tempo para um velho independente como eu.»
« — Mas quando vais às festas todos te adoram!»
E assim continuaram por mais algum tempo. A Solidão lembrava ao Lúcio tudo aquilo que ele perdera. Tentava convencê-lo a voltar, a voltar à vida, a uma vida com sentido, uma vida não separada dos outros.
O Lúcio por seu lado revia-se nos olhos da Solidão, essa tão grande Amiga. Percebia ainda mais no seu olhar do que ela dizia com a voz: afinal tinham os seus pais tido tantos desgostos, tantas dificuldades, para lhe proporcionarem a vida que ele tinha, e ele desperdiçava-a dessa forma! De que servia tudo o que fazia, tudo o que pensava, tudo o que sentia, se não o desse a alguém?
Essa famosa frase «Tudo o que não dás, perde-se!» ecoou muitas vezes na mente de Lúcio, talvez não tivesse sido dita explicitamente pela voz da D. Saudade, mas estava escrito a ferro e fogo no seu olhar. E esta outra também: «não és nada sem os outros».
A conversa entre os dois continuou, por vezes mais vigorosamente, outras vezes mais calmamente, e com risota e tristeza pelo meio, como costuma acontecer entre bons amigos à medida que se lembravam de coisas boas e más. Viram também albuns de fotografias, a Saudade ainda trouxe mais umas quantas para além dos que havia em casa. E as fotografias mostravam mundos dentro do mundo: a Sheila estava maior, já parecia uma rapariguinha, e aquela ida às Seicheles foi o máximo. O que eles se divertiram... as fotos não deixavam dúvidas! Dava para ver que tinha sido o máximo!
No final do dia a D. Solidão teve de partir.
« — Tudo tem um fim,» disse o Lúcio, «até estes momentos tão agradáveis, esplendorosos e cheios de luz que tenho contigo...»
« — Meu querido Lúcio, e só não são mais porque tu não queres... vem viver para minha casa! Terás a companhia infindável de uma trupe de gente sempre mirabolante que não te dará um minuto de paz, mas muitos de contentamento!»
« — É uma proposta extremamente agradável,» respondeu Lúcio, «mas já tenho aqui tantas outras coisas que também gosto de fazer, talvez um dia mais tarde! ... mas sim!, gostaria muito, se não fosse o resto!»
« — É pena! Talvez um dia mais tarde, quando decidires que queres fazer parte ativa de nós, do nosso dia-a-dia, seja demasiado tarde. Pensa bem Lúcio, até a afinidade do coração se perde com o tempo e a falta de contacto. Senão cultivares as relações chegará uma altura em que ninguém te amará ou conhecerá o teu nome. No máximo serás lembrado como uma recordação distante por alguns, e a companhia que terás será paga ou por pena. Digo-te isto para teu bem! Para ver se ponho algum senso nessa cabeça dura e teimosa!»
« — Agradeço-te imenso meu amor, sei que queres o melhor para mim. Vou pensar no assunto. Certamente as saudades são muitas e gosto imenso de estar convosco. De certa forma estou. No meu coração não há longe nem distância...»
« — Pois, mas isso tem muito que se lhe diga, também se diz "longe da vista, longe do coração"» rematou a D. Solidão.
« — E é bem verdade» respondeu Lúcio. «Eu sei que um dia poderei ser apenas um estranho para todos os outros. Sem haver alguém que se importe com o meu destino ou com o meu bem estar. Há biliões de seres nessa situação, estão sós, ou melhor, sentem-se absolutamente sós, perante a aventura infinita da vida. Tu, pelo contrário, meu amor, estás plena de amores que os teus filhos, familiares e amigos plantam e cultivam em ti quotidianamente. Para ti a vida é um sol constante, um prazer permanente. E eu desejo que seja sempre assim. Talvez tenha sido alguma coisa que fizeste numa vida passada e agora tenhas a recompensa. Seja como for, os nossos caminhos são estes e têm de se cumprir.»
« — Pronto! Farás como entenderes. As nossas portas estão abertas, nunca te esqueças! Mas não deixes passar muito tempo, pois mesmo o que está recetivo e frondoso agora, acabará por murchar e secar com o tempo.»
« — Sim, e o meu coração está convosco, mesmo que eu não esteja! Enquanto eu for eu, amar-te-ei!»
« — Ui, que palavras tão caras para alguém que nunca aparece!» disse a Solidão rindo-se.
« — Sim, e são verdadeiras!»
E foi assim, a rir-se e com carinho, que se despediram. Iria passar muito tempo até se voltarem a encontrar.
Antes de voltar a entrar em casa o Lúcio ainda ficou a ver a D. Solidão a ir-se embora, a sua figura anafada e carinhosa ia ficando cada vez mais pequena ao longo do caminho.
Um grande sorriso encheu então a cara de Lúcio, um sorriso que se foi alastrando até preencher tudo, até rebentar numa gargalhada.
Quando a D. Solidão estava tão longe que já não podia ouvir o Lúcio este largou a rir a bom rir, agora já dentro de casa! Já era demasiado, tanto drama e ovação aos mortos. Voltou-se para os seus morangos. Mas, antes disso, pensou, vou ainda voltar a essas recordações. Não tanto com os olhos do corpo, que vêem muito pouco, mas com a compreensão da mente e os olhos da alma. Voltou a ver a Sheila, e a gargalhada dela era também a sua. Ele ria-se com ela, ele era o riso dela, e apesar de ela não estar ali e nunca se terem visto ao vivo, ele era, de certa forma, também a alegria dela. Ele era muita coisa, era o canto das aves e também a gota de suor daquele jogo de ténis nas Seicheles. Ele era o grito dos amantes e a dor do atum na rede ao ser pescado e asfixiado lentamente à luz do sol. Ele era a nuvem altiva e o gafanhoto saltitão, a joaninha voadora e endiabrada, a mosca paralisada durante dias na teia da aranha, à espera da morte. Ele nunca deixara de ser tudo. De fazer parte de tudo. Como seria possível estar alguma vez sozinho?
Era nisto que pensava e sentia enquanto se ria a bom rir e uma sensação de plenitude cósmica o invadia. E como ele amava a D. Solidão! Por amor a ela não se riu na sua presença, porque era um riso que ela não podia compreender, que ela não podia acompanhar. Na verdade, era um riso que, caso ela o compreendesse profundamente, a iria destruir. Pois não é possível ser só e Lúcido ao mesmo tempo. Tal como não é possível ser sedento de companhia sem ser só.
E, por amor e respeito, o Lúcio sofreu a solidão na companhia da Solidão. Ele foi a cara da miséria, o rosto da tristeza, para aquela que ele amava, pois só assim poderiam estar juntos. Quando ela voltasse ele voltaria também a vestir aquele manto de finito acabrunhado, onde mesmo assim sobressaía o seu amor real mas, agora, iria deliciar-se com os morangos tão doces que nem de açúcar precisavam, e viajar, em alma e pensamento, para onde quer que a sua vontade o levasse. Era um com tudo. E ria-se... xDDD
Já ninguém aparecia em casa do Lúcio há muitos anos e nunca mais alguém o iria desejar ver.
Quem o conhecera já se esquecera dele. Ou então, lembrava-o de forma tão ténue e distorcida, que era como se a lembrança fosse de uma outra pessoa qualquer.
O próprio Lúcio, se ainda existisse... mas não, perdera-se algures entre a terra, o céu e o mar... perdera-se tanto que a única coisa absolutamente certa era nunca ter existido, a não ser como persona, como conjuntura / contexto fluído, que deixa uma marca, que dura algum tempo, que parece alguma coisa diferente do tudo que de facto é.
Mas tudo (estrelas, galáxias, aventuras, pensamentos e sensações sem fim) existia... e iria continuar a existir... mundos dentro de mundos...
Na noite cósmica o sorriso voltava a aparecer e uma gargalhada estimulante, livre, lúcida, parece que se adivinhava a toda a volta...
O Lúcio nunca existiu realmente, como coisa perene, mas foi, no baile de máscaras, aquela pessoa que, em muitos momentos, quis ser ao máximo a fagulha de luz que há em todos nós.