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Matar para viver...


– Zé!! Tens pó no cabelo! Mas o que é que andas a fazer que ninguém te vê há que séculos?!
– ... (sentado em posição de lótus - não responde)
– Mas o que é que tu estás a fazer?!? (começa a limpar-lhe o pó da testa e dos cabelos)
– ... (silêncio total)
– Bem, vou chamar o resto da malta para ver se eles conseguem alguma coisa...
– Espera, espera... vou-te explicar... mas vou ver se não falo muito... é assim, descobri recentemente que tudo o que fazemos mata alguma coisa, o próprio facto de estarmos vivos é uma luta constante contra outros seres, que vivem dentro e fora de nós, tipo nos intestinos e sobre a pele. Depois, ao comermos temos sempre de matar alguma coisa, vegetal ou animal, o que interessa? E mesmo se quiseres andar para algum lado, ou simplesmente abrir a boca, matas instantaneamente milhares de pequenos bichos que vivem por toda a parte. É horrível e decidi a partir de hoje que já não vou matar voluntariamente mais nenhum bicho... por isso vou ficar aqui para sempre, recuso-me a participar nesta matança cósmica do universo, recuso-me a ser um cúmplice neste assassinato de bichos, irei morrer, mas ao menos morro de consciência tranquila...

O João para por um momento e olha atónito para o seu amigo sem saber se há-de rir ou de chorar... passado um bocado diz:

– Zé! Tu és genial, verdadeiramente. (O Zé enrubesce as faces ligeiramente) És mesmo incrível, sabia-te inteligente, sábio, de bom coração, mas nunca pensei que fosses tão digno ao ponto de dares a tua vida pelo bem estar do universo, parabéns!! (as faces do Zé aumentam ao rubro, emoldurando um sorriso que mal consegue disfarçar) A tua visão de sábio põe-te acima do próprio ciclo da vida e da morte... é fascinante!!

Passam uns segundos enquanto fã e mestre se observam nos calmos momentos que passam...
– Já sei, vou-me juntar a ti! A tua conduta é tão digna que não posso deixar de o fazer. Morreremos ambos recusando-nos a participar na matança cósmica...
– Hummm... não sei porquê isso não me agrada...
– Mas porque não?
– Porque ao aliciar-te para esta conduta estarei a tirar-te a vida. Afinal ao tentar salvar tantas pequenas células terei perdido o meu amigo... isso não pode ser...
– Mas que disparate é esse? Fazes o mesmo, matas o teu próprio corpo para salvares corpos alheios...
– Mas é diferente, é o meu corpo...
– Bem, e este é o meu corpo e faço dele o que bem entendo, tal como tu...
– Sim, mas fui eu que te aliciei... se soubesse nunca teria falado nisso, diria que estava com reumatismo ou algo do género...
– És parvo, o reumatismo não é grandioso, isto é mais que grandioso, isto é fugir ao ciclo da morte e da vida, é dizer que estamos para além... Sim, podemos morrer de fome, mas não mataremos ninguém!!
– És um parvo, não quero que morras para salvares uma batata!
– Mas tu irias fazer o mesmo!!
– Já te disse, é a minha vida, mas a tua vida é diferente. É sagrada, se eu me mato para salvar milhões de pequenas vidas como achas que me sinto ao ver-te morrer a ti, meu amigo, por causa de uma ideia minha?
– Então porque estarias tu disposto a fazer isso? Porque estarias tu disposto a deixar morrer as tuas células, a tua mente, a tua vida, para salvares outras células, outras mentes, outras vidas?
– Porque não gosto de matar, repugna-me qualquer ideia de destruição que eu faça, de que eu seja responsável. Mas admito que outros seres possam ser violentos e possam matar para viver, é a escolha deles, a minha escolha é esta. Agora, preferia que te esquecesses de toda esta conversa, vai-te embora e esquece-te que algum dia me conheces-te, não quero ser responsável pela tua morte. Preferia matar as couves e as batatas da alimentação de toda uma vida que morresses tu.
– Bem, e porque não diria eu o mesmo?
– Ai, ai... que imbróglio, estava eu aqui tão sossegado em contemplação, mas porque é que me havias de me vir chatear???

– Olha, já sei, dizem que há aqui um sábio muito conhecido, ele é grande e sabedor no conhecimento das coisas, de certeza que nos poderia ajudar a clarificar as ideias. O que é que achas se formos lá?
– Vamos matar imensos bichitos pelo caminho...
– Era só mais uma vez, em memória dos bons velhos tempos... Aliás, talvez ele tenha a dizer algo que me salve a vida a mim e te permita continuar a ti o teu caminho de gigante... Era uma boa tentativa para salvares aqui a vida do teu velho amigo...
– Ok, vamos lá...

...

À porta do mestre houve-se um ruído... (Zuummm)
Diz o João – Entra com cuidado, ele deve estar em meditação...
Os dois amigos entram para se depararem com o velho sábio, em posição de lótus, emitindo o estranho zunido... Parecia que flutuava no ar, num tempo que não era o seu, perdido em estranhos pensamentos e visões...
Finalmente o João interrompe...
– Desculpe velho mestre, viemos interromper a sua meditação, mas era por um assunto importante...
– Hummm... (O mestre parece que desperta de uma longa viagem) Ah!! Não faz mal, não faz mal, estava simplesmente a imitar uma mosca... dizem que elas têm uma vida sexual muito interessante, e como a box da tvcabo se avariou... mas pronto... vamos a coisas sérias... também já imaginei um búfalo, mas aquilo é muita carne para pouca acção... ai, ai... nestes dias a imaginação esgota-se... mas o que vieram cá fazer?
– Bem, é aqui o meu amigo, o Zé, sabe, ele...
– Eu explico (diz o Zé), sabe, eu cheguei à conclusão que este mundo nos põe perante uma dura escolha: para viver temos de matar, temos de dizer que somos mais importantes do que os outros, do que os vegetais que comemos, do que os bichos que nos querem comer, do que a inércia, do que a preguiça, do que o pó que se acumula nas estantes... estamos sempre em luta, a tentar conquistar algo, a tentar fazer um belo jardim... mas para isso destruímos aquilo que, pelo nosso olhar cimeiro, se tornam as ervas daninhas... pois bem, eu pensei muito e descobri que talvez não hajam ervas daninhas, talvez esteja tudo no nosso olhar, talvez sejamos nós que, ao querermos impor um ponto de vista, descubramos que temos de matar para o fazer... e que ponto de vista é assim tão importante para matar seja o que for? Para um mero pensamento é preciso activar biliões de neurónios. Estimulamos umas ligações, perdemos outras, células nascem e morrem por causa de pensamentos, mas o que faz com que um pensamento seja verdadeiramente valioso, se toda a acção se irá perder no fim do universo, se nada restará da nossa memória? Então recuso-me a agir, recuso-me a interferir no mundo... prefiro morrer a ter de matar, prefiro não viver a ser imoral, porque é imoral acharmo-nos superior ao que desconhecemos na sua origem radical...
– Compreendo, diz o sábio abanando a cabeça, és então um filósofo... usas muito a cabeça e pouco tudo o resto... é natural, é natural... mas o caso não é assim tão desesperado... Diz-me, não és também um animal como os outros?
– Sim.
– E não terás também obrigações para com esse animal?
– Recuso-me a matar...
– Mas assim estás a matar! Estás a matar o teu corpo.
– Não, estou simplesmente a recusar matar...
– Deixa-me ver... se és uma pessoa como as outras hás-de ter fome e sede, vontade de dormir, de fazer amor, de correr, de ver o sol raiar, de conhecer coisas novas, etc... não é verdade?
– Sim, mas tudo isso é pequeno comparado com o preço de ver coisas a morrer, e saber que sou eu que tem de as matar...
– E como fazes quando tens fome?
– Refreio a fome, não como.
– Não estás assim a matar células no teu próprio corpo?
– Sim... mas... é o meu próprio corpo! Eu sou responsável por ele...
– Dirias antes que o teu corpo se sacrifica para a tua grandeza...
– ... como?
– Para que tu sejas grande, como disse o teu amigo, sujeitas o teu corpo à morte mais cruel... Biliões de biliões de células vivem para que tenhas, como dizes, “pensamentos”, e o teu pensamento é o de que deves aniquilar todas essas células em nome de...
– Não, não, simplesmente recuso-me a matar para viver...
– Mas estás a matar, para que viva outra coisa, o teu desejo de pureza...
– Sim, sinto que isso é mais importante que a minha própria vida.
– Sim.
– É como se a única maneira de ser ético seja o suicídio. Ou se vive sem acreditar que haja um sentido, ou, se há um sentido, temos de recusar uma vida onde não se pode ser puro. De qualquer das maneiras, viver é amoral ou imoral. Para se ser moral é preciso renunciar à vida...
– E no entanto tu matas para renunciar à vida...
– Não...
– Matas o teu próprio corpo, o teu círculo de amigos, a tua liberdade, a tua expressão, a tua própria aparição neste mundo...
– Não, não é isso...
– Tu interferes na vida, sob o pretexto de não quereres viver fazes a mais profunda alteração, sob o pretexto de não quereres matar, matas-te a ti próprio, mas diz-me, o que tem a morte assim de tão especial?
– A morte?
– Sim, porque não disseste que não querias interferir. Fiquei com a ideia de que darias comida a pássaros e borboletas, caso isso não causasse morte, que distribuirias felicidade aos teus amigos, que serias um sol para toda a gente. É a morte que te assusta, é causares a morte...
– É causar a morte e a destruição, é isso que não quero. A morte é um símbolo de destruição...
– Vou-te pois cantar uma velha lenda numa língua estranha, e vais compreender tudo... ou melhor, já é quase altura da novela das 5... Espera aí, vou dizer-te apenas isto, já deve chegar: Com a tua morte trarás morte. A verdadeira morte não é a morte física, é a falta de esperança. Vivemos para ter visão, uma visão mais ampla das coisas, mais profunda, mais perfeita, mais real, mais nossa. Trarás vida a quem trouxeres esta visão e trarás morte a quem afastares do seu caminho. Não tem nada a ver com a morte física, isso são bagatelas (nisto a telenovela começa)... ai, ai... bem ainda faltam umas coisinhas, mas olha, depois falamos melhor, tá bem?? Então adeus...
(O sábio mete os dois amigos no meio da rua, polida mas rapidamente, enquanto vibra com a novela)

– Então percebes-te alguma coisa?
– Os sábios são esquisitos...

O João tinha comido uns crackers enquanto o sábio falava, mas como o Zé tinha ouvido atentamente tudo o que o sábio lhe dissera estava ainda um bocado zonzo.

– Então Zé? Butes lá sentarmo-nos e morrer para que vivam as moscas e as abelhas?
– É pá, não sei, tou um bocado zonzo da conversa daquele tipo? O que é que ele faz para viver?
– Eu acho que ele dá conselhos às prostitutas do bairro sobre os modos de manter os chulos com elas, pelo menos foi o que ouvi dizer, mas não sei bem...
– Meu Deus, e trouxeste-me aqui!, aquele tipo é um saco de pulgas...
– Mas então vamos morrer ou não? Afinal o bem do Universo espera-nos, vamos mostrar às pessoas que há coisas mais importantes que viver, que...
– Olha, cala-te um bocado tá bem? Acho que desisti daquela ideia de morrer, dá muito trabalho... vamos antes tomar um copo, tá bem?
– Fixe! Mas então quando é que morremos para bem do universo?
– Daqui a uns tempos, não sei, ainda vou pensar, tenho uns telefonemas para fazer e isso...

Nisto chegam ao bar da esquina, onde se desenrola uma valente discussão:

– EU sou o Melhor!!
– E eu sou o mais sábio!
– Pois eu sou o mais bondoso!!
– Vão-se mas é catar, eu sou o melhor, sou mais forte e este bar é meu (entretanto os dois amigos entram e assistem à discussão entre duas canecas de cerveja), vocês podem ser tudo o que quiserem, mas vão baixar a bolinha enquanto eu estiver aqui. Eu sou o Rei.
– Tens toda a razão – diz o sábio – eu sei o que é melhor para mim. Mas de que te serve ser mais forte se não tens nada?
– Tenho o teu belo presunto se o quiser, se me der na real gana posso dar cabo de ti... és meu escravo, meu pedinte, tudo o que fizeres terás de me pedir...
– Parece muito interessante belo e grande Rei... Afinal tens uma vida vasta... vives rodeado de escravos que te alimentam e te dão tudo o que pedes, deve ser bom viver assim, rodeado de escravidão e sofrimento, sabendo que tens o poder de matar e infligir o medo a teu belo prazer, sabendo que todos te odeiam mas obedecem, que geres a vida a teu belo prazer, mas que a vida te acha repugnante e procura fugir do teu jugo. És forte belo Rei e não posso dizer que invejo a tua vida, mas percebo porque invejas o meu presunto!!
– Vai mais é lá para fora!!
– Com prazer! (nisto o sábio sai)
– Tu podes ser Rei e forte, mas és mau e eu sou bom (isto era o bom a falar)... E não vou deixar que isto fique assim, podes ganhar hoje, mas mais tarde ou mais cedo eu vou-te destruir, e perceberás então quanto mal fizeste, quando o fogo da vingança eterna se abater sobre ti, como o mais ágil dos guerreiros...
– Falas falas, mas vais lavando o chão, diz o homem forte rindo-se...
– É por pouco tempo, pensa o homem bom, porque tudo em mim é rebelião. Impões-me o teu jugo, sem saberes que ele me alimenta com o espigão que te tirará a vida...

Nisto os dois amigos que bebiam entretidos a cerveja com todo este espectáculo, preparavam-se para pagar e sair... Mas o Zé, que matutava nas palavras que o mestre lhe tinha dito sobre a vida sexual das moscas, saiu-se com esta:

– Eu é que sou o mais forte! (diz o Zé)
– O quê, diz o homem mais forte, tu!! Mas és doido ou quê?
– Não, o que eu quis dizer na verdade é que eu era o homem mais forte, há muito tempo, entretanto envelheci e quase ia morrendo... mas agora estou aqui... sei o que sentes, pois também eu tive legiões ao meu dispor. Os homens obedeciam-me, as mulheres idolatravam-me, tive mais de 700 filhos, e agora estou aqui, como vês... (O João nisto ria-se subtilmente para dentro da caneca, já estava habituada às historietas do amigo...)
– Não me digas, a sério?
– A sério, mas tão a sério que nem podes imaginar... por isso, melhor que todos estes que te observam de fora, eu posso ver-te de dentro e dizer-te onde tudo isto irá parar. Pois o certo é que os teus amigos te trairão, as tuas mulheres te abandonarão, os teus filhos usurparão o teu lugar, e tudo isto devido a um só ser, um só ser traidor, mesquinho, abominável, que te trairá e fará tudo para que caias, até ao último momento...
– A sério, isso aconteceu-te? Mas a mim não, porque eu não confio em ninguém. Cá para mim estás-me a enganar...
– Não, estou a dizer a verdade... E vou-te dizer já, porque vais perceber que é verdade, quem era o grande usurpador, o grande traidor...
– Então quem? O teu alfaiate?
– Não.
– A tua mulher, a sua amiga, o padeiro, o cozinheiro, o limpa-chaminés, o lambe-botas, o general, o professor, o cão?
– Não. Não, nem sequer o cão, mas eu próprio. Fui eu que me traí!
– Agora sei que estás a mangar comigo...
– Não, estou a falar a sério. Porque, mesmo tendo todo esse poder eu afastei os meus amigos, traí as minhas mulheres, e privei-me do que queria ter, verdadeiramente. Estás a ver, eu tinha tudo, mas não tinha nada do que queria. E era eu próprio que me roubava a mim próprio das coisas mais importantes. A todos os amigos escravizava-os, a todas as mulheres manipulava-as, a todos, todos, oprimia. Por isso traí o meu fim último e fiquei na miséria no fim, porque alimentei em toda a parte a repugnância à minha presença, em vez de amor. Dei ódio em vez de gratidão e recebi ódio em vez de gratidão, dei opressão e as pessoas quiseram oprimir... Vivi no mundo que eu próprio criei, na casa que eu próprio construí, mas fui eu próprio, tendo todo o poder, que enviesei as fundações e que pus lodo onde devia haver água e um deserto onde devia haver terra firme. Por isso tudo ruiu e toda a minha obra, apesar de grandiosa, é hoje vista como obra de um maníaco. Ela talvez seja um pouco admirada, mas eu não, de qualquer forma, não pelas pessoas ou pelas razões que eu o quereria ser. Enfim... é a vida (e com isto sai do café, seguido do João)

Dentro do café, diz o poderoso: – chamem o sábio, quero compreender o que este homem, tão parecido comigo, me disse...

Fora do café os dois amigos caminham pela rua...

– Sabes que mais, diz o João, está uma noite linda...
– Vamos ter com as miúdas?
– Então e o comer e viver e morrer e tudo isso?
– João! Tu és um grande amigo, percebeste o disparate que eu estava a fazer desde o princípio! A vida e a morte não interessam, a amizade sim!

Uma estrela brilhou diante deles, enquanto riam pela noite dentro!!