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- O Farol -
Depois da guerra foi a confusão geral, todos os que sabiam tinham perecido, e agora voavam pedaços de silício, peças de computador, vestígios de uma grande tecnologia, de um grande poder, perdidos para lá de toda a esperança. Havia computadores, mas não havia electricidade, havia carros mas não havia gasolina. O mundo tinha-se tornado num vasto caos, todos os elementos estavam lá mas ninguém sabia como os usar.
Lentamente, ao longo do tempo, as pessoas separaram-se em vários grupos. Havia quem idolatrasse os metais em virtude das suas propriedades mágicas, havia quem tentasse compreender, e a maioria das pessoas pensava noutras coisas. Estas últimas eram os blocos de uma nova civilização, sem que elas próprias o compreendessem ou quisessem compreender. Vivam a vida de uma forma simples, de dia comiam, de noite dormiam, as estrelas por cima delas vogavam, e a terra por baixo delas multiplicava-se em numerosas plantas e animais, sem que elas o soubessem ou quisessem saber porquê. Mas pelas suas mãos e pelos seus cérebros, pelas suas ideias que germinavam lentamente, surgia uma nova sociedade, tal como as plantas numa floresta nascem sem saber porquê, nem para quê, mas vão mesmo assim constituindo parte do padrão da vida que um dia levará seres às estrelas e os fará contemplar o universo todo de uma só vez...
Despertai, diziam uns aos outros, despertai para o amor, para a namorada, para o trabalho, para a vida, despertai, dia após dia, para a mesma realidade, para o mesmo ciclo infindável de afazeres, para a produtividade infinita de quem está sempre no mesmo lugar e produz montes de coisas à sua volta permanecendo sempre o mesmo.
Nas imediações havia um monte de cacos, tratava-se da linha que distinguia a terra do mar. Havia ainda barcos mas ninguém que os soubesse pilotar. E lentamente perdeu-se o conhecimento do que era um barco ou de para que servia. Misturavam-se agora com a paisagem, como rochas sem vida. As crianças brincavam com esses despojos sem poderem adivinhar o poder que estava neles contido. Sobre uma falésia reuniam-se e tentavam montar os diversos cacos de forma a construir qualquer coisa bela. Qualquer coisa que levasse os outros da aldeia a dizer “magnífico”, “que espectáculo”.
Havia pedaços que transpareciam à luz, havia pedaços fortes e opacos, havia pedaços com estranhas reentrâncias. Coisas que ou pareciam muito leves para se tocar, ou muito pesadas. Os miúdos construíram várias coisas. Durante anos foram misturando os metais de maneiras quase caóticas, mas lentamente começou a surgir um padrão. O primeiro vestígio de uma máquina, o que eles não sabiam ser um gerador. A parte exterior foi mais fácil. Erguendo-se contra o sol, uma magnífica estrutura de pedra e betão afirmava-se contra a paisagem. Não havia muitas maneiras diferentes de unir os diferentes blocos de pedra que faziam a parte exterior do edifício. O pior era o princípio e o fim. O gerador e a luz. Esses eram mais complicados, podiam ser montados de muitas maneiras, e eram perigosos. A parte de cima partia-se facilmente e podia cortar com grande dor. A parte de baixo era dada a explosões. Alimentava-se de energia solar, mas depois, quando se punha a trabalhar, aquilo dava para todos os lados, era perigoso, e alertava a vizinhança para estranhos malefícios. Punha os místicos a pensar em estranhos poderes mágicos e as pessoas assustavam-se, e por mais de uma vez tentaram (e conseguiram) proibir os miúdos de brincar com coisas tão “perigosas” e assustadoras, coisas que punham em causa a vida pacata da comunidade e a autoridade daqueles que diziam já ter descoberto tudo, já ter sabido tudo. Perante o esquema geral das coisas, aquilo simplesmente não devia existir, os geradores eram coisas perniciosas e más, em vista das gentes da aldeia.
A brincadeira, apesar disso, continuava. Mas o mal estar dos miúdos era agravado por não saberem o que deviam fazer com as coisas. Primeiro tentaram pôr o gerador em vários sítios e usá-lo de modo útil, mas fazia sempre muito barulho e acabava sempre por queimar alguém, absorto em todas aquelas luzes e ponteiros, e no poder quase infinito que se adivinhava no seu interior, alguém acabava por pôr a mão onde não devia, por tentar abri-lo mesmo a meio do seu funcionamento, por tentar dissecá-lo, possuir toda aquela energia, aquele saber, e a coisa dava para o torto. Às vezes explodia e magoava alguém, outras vezes simplesmente parava para a frustração geral. Muitos miúdos desistiram ou ficaram feridos nesta fase. A mesma coisa com os pedaços de vidro que faziam a luz que eles não podiam adivinhar, mas cuja forma apagada podiam agora entrever sobre a forma dos filamentos que a poderiam gerar, e da luz do sol que transparecia entre as pequenas superfícies de vidro, como milhares de sois desmultiplicados em mil formas. Era uma alegria olhar para aquilo e rapidamente todos os miúdos decidiram levar os vidros para longe do farol. Construíram um altar onde dispunham os vidros de várias formas, o que só aguçou a curiosidade dos aldeões, e fez surgir explicações ainda mais mágicas e engraçadas sobre os poderes dos vidrinhos e o significado da sua luz.
Mas alguns miúdos adivinhavam que, de alguma forma, o pedaço de luz e os pedaços de ferro tinham algo em comum. Eles tinham sido feitos para viver em conjunto. Da mesma forma, também a casca exterior do edifício que tinham construído devia ter o seu papel a desempenhar em toda aquela gigantesca construção. Havia coisas subtis e materiais muito pesados, mas tudo tinha de ser integrado e feito num só. Por isso, um dia, roubaram os muitos vidros que pousavam esterilmente no altar, e puseram-se em fuga em direcção ao Farol. Ainda não era um farol na altura, nem eles sabiam nada de faróis, mas em breve iriam saber, em breve a sua luz iria iluminar a aldeia e a ténue separação que existe entre as criaturas da terra e do mar, e da fina linha de costa que as separa.
Os miúdos pensaram e pensaram. Aquilo que é leve e belo deve estar dirigido para todos, à vista de todos. Aquilo que alimenta o que é belo e leve, como as raízes de uma árvore, está em baixo. No entanto, as raízes não existem sem as folhas (que não existem sem o sol), nem as folhas existem sem as raízes. As raízes devem portanto viver em função das folhas, para que as folhas possam viver em função das raízes, e nesse caso haverá uma sintonia perfeita entre o baixo e o cima. Todos os centros estarão ligados. O primeiro e o último estabelecerão a ligação principal e todos os outros irão ao lugar para se alinharem com eles.
Portanto puseram o gerador em baixo, pesado, só cabia aí. E tentaram fazer a ligação com os vidros de luz, que puseram em cima, num sítio de onde se via toda a paisagem (uma espécie de altar, pensaram, mas desta vez natural, de onde podem ser admirados, mas onde podem também admirar e trazer luz ao mundo). A ligação entre o gerador e as luzes foi a mais complicada e muitos miúdos desistiram nessa época. Acharam que o Farol estava bem como estava, apagado mas bem feitinho, bonitinho. Afinal agora todas as peças cabiam, de fora parecia perfeito. Porquê ainda tentar mais, as ligações interiores, de que é que serviam, ainda iriam estragar alguma coisa. Sabia-se bem do poder do gerador para queimar tudo e mais alguma coisa (os aldeões fugiam dele) e da fragilidade dos vidros (que os aldeões procuravam para guardar e nunca mexer, para não se partirem, como relíquias de alto valor). Portanto, como ligar as duas coisas mais dissemelhantes? Iria apenas estragar-se tudo. Não, para eles o ideal seria retirar de novo o gerador e escondê-lo num sítio qualquer profundo, onde não pudesse fazer estragos. Quanto aos vidros, poderiam vendê-los ao melhor preço ou fazer bom negócio com eles, deixando-os simplesmente ali e cobrando pelas pessoas que os quisessem ver, quem sabe se não se tornariam nos novos magos da aldeia, falariam dos estranhos poderes, das capacidades de cura, de milhares de poderes secretos e ganhariam o pódio na mentalidade do campesinato!
Mas outras crianças tinham já dispendido muito tempo a tentar resolver o mistério. Tinham decifrado os blocos que se afirmavam contra a paisagem, tinham descoberto as estranhas ligações internas do gerador e ficado maravilhadas com o seu funcionamento interno, tinham passado dias, meses da sua vida, contemplando a ordem mágica que desfilava perante elas dentro dos pequenos vidrinhos, e olhavam para tudo aquilo e diziam que não podia ser por acaso. Quem quer que tivesse construído o metal feio do gerador tinha construído também a beleza dos vidros e a força do manto exterior. Tudo havia de fazer sentido, tudo! Só era preciso ligar. O bem e o mal, o fogo do inferno à luz dos anjos, a leveza com a solidez, a magia com o desejo feérico. Tudo havia de ser um só. E quando isso acontecesse, algo de mágico iria acontecer, não a magia de que falavam os ilustres chefes da aldeia, mas uma magia que enchesse o mar e a terra de um novo brilho, uma magia real, verdadeira, uma magia que não era magia, porque era algo natural, uma potencialidade desde sempre presente naqueles cacos, só à espera que alguém a decifrasse, que alguém viesse e visse no caos a beleza primordial e primitiva que se esconde em tudo através da noite dos tempos, até que alguém faça da noite dia, até que alguém desperte verdadeiramente e diga “é assim, a vida, o cosmos” e faça brilhar, na escuridão imemorial da noite, um tempo diferente, um tempo dos antepassados, um tempo onde a sabedoria legada se concentra num só ponto, num só lugar, e brilha, num brilho cujas réstias se expandem para o universo inteiro (como é o caso de cada estrela).
Então os miúdos tentaram e tentaram, apesar do que diziam os chefes da aldeia, e do que diziam os outros miúdos, e das promessas de fama e de dinheiro fácil, e da dificuldade de tudo aquilo, apesar disso tentaram, apaixonados pela magia da coisa, pela magia do intentado, do inacabado, do que adivinhavam podia ser. Era a magia de algo que transbordava o mundo, que não cabia no mundo, por isso deixaram-se levar por ela, e perderam muita coisa em nome de algo que ninguém podia ver, porque mesmo aqueles que acreditavam haver uma ligação secreta, não percebiam a utilidade. Preferiam o pão e o vinho, as mãos em partes secretas e o olhar admirante de outros. Preferiam ser reis de um mundo pequenos do que vagueantes num vasto mundo que não podiam compreender. Preferiam o lugar criado pelas portas da sua casa, do que o vasto mundo que o farol fazia adivinhar.