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Boas!! O texto que se segue não é fácil de ler , é um bocado psicológico, distingue dois níveis do eu – o eu transcendental, ou mais simplesmente, o não-eu, do eu psicológico do género, eu sou assim ou assado, ele é assim ou assado, etc, etc.

Comecemos com um exemplo, lembro-me de um dia ter ido à rua ver o pôr do sol num lugar longínquo, eu era puto (6-8 anos) e tinha medo de sair à rua sozinho, para mim foi um acto de coragem. Ao voltar aparecem três miúdos, mais ou menos da minha idade. Eu senti logo que ia haver problema e mudei de direcção, mas eles foram atrás. Quando nos encontrámos pergunta o do meio: conheces X (já não me lembro do nome)? Onde é que moras? Etc. Eu pus-me a inventar, e o medo crescia dentro de mim. No final sabia que eles me iam fazer alguma. O tipo do meio deu-me um ‘estalo duplo’ (com ambas as mãos ao mesmo tempo). Depois ficaram a ver a minha reacção, como tive medo e não reagi, simplesmente foram-se embora, lembro-me de um deles me dizer que ‘se conhecesses o X não teria havido problema, porque ele tem medo do X, agora assim não havia hipótese’.

Não me roubaram, não me aleijaram, não doeu propriamente a nível físico, mas a humilhação e o medo ficaram até hoje.

Agora, no jardim de infância costumavam perguntar, ‘tens medo de mim?’, e havia uma espécie de hierarquia, o Mota era o principal, e ele perguntava-me invariavelmente, ‘tens medo de mim?’ E a mim a pergunta parecia tão absurda, é claro que não, como é que havia de ter medo dele? Como é que eu havia de ter medo de alguém? Afinal, eram só pessoas, como eu, tinham braços e pernas e podiam magoar muito, mas eram só pessoas. Respondia invariavelmente que não, e havia sempre molhada a seguir. Mas éramos grandes amigos, o Mota e eu, e dada a minha incapacidade de sentir medo dele acabei por me tornar o ‘2º mais forte’ sem sequer ter de enfrentar ninguém, a minha desobediência era suficiente para isso.

Mas se eu não tinha medo das pessoas, tinha medo e desespero perante o inumano da luta, do desprezo, aquela sensação de ‘tu não é mais do que uma pedra, ou assim, podia matar-te já agora, és lixo, és vil para mim’. Era essa sensação, que antecipava os verdadeiros confrontos de rua com grupos de desconhecidos, que eu não podia aguentar e que me apavorava.

Hoje reconheço que eu próprio tinha essa desconfiança em relação a mim próprio, seria eu digno de ser gente, estariam eles ali simplesmente para me mostrar a verdade, para me mostrar que eu era tão baixo, tão reles, que nem teria direito à vida? Era desse confronto que eu tinha medo. O confronto com o meu próprio medo, o teste à insegurança, que era simultaneamente um buscar das fundações.

Agora este exemplo tem um propósito que é o seguinte. Eu ‘descobri’(?? – ou inventei?) que há dois eus, o eu do momento, espontâneo, e do qual penso que não se pode falar, apenas viver, e cada momento é novo, inesperado, espontâneo, cheio de luz, mais vivo. E depois há uma outra coisa, que são os conjuntos de nossos medos e bloqueios que fazem uma espécie de ‘capa’ para o mundo, aquilo a que chamamos o nosso eu, e que é também a forma como nos vemos e (parcialmente, como) os outros nos vêem. Era isto que eu queria explicar com a ajuda do exemplo e vou para lá agora:

Quando os putos se aproximaram de mim, vivia eu ainda o Sol e o mar, o Sol do pôr do sol e o mar das ramagens altas das árvores que assobiavam ao vento, marulhando ondas de vivacidade e de saudades da Glória desse Sol que se punha, viajando para alumiar outro local longínquo. Talvez na altura não o dissesse com estas palavras, mas era mais ou menos isto que sentia. Quando vi os miúdos aproximarem-se esse sentimento acabou, aliás tudo acabou e ficou em conflito. Havia algo que eu não podia ver, que me recusava a ver naquela situação, o seu ódio e desprezo, ao bloquear isso, bloqueei uma grande parte do que se passava em mim (e no exterior). Por exemplo, bloqueei todos os pensamentos que tinham a ver com esse desprezo e com os possíveis modos de lidar com ele, bloqueei a minha própria apreciação desse desprezo, o que pensava dele, se é que já o tinha sentido em relação a outros, sobretudo bloqueei-os a eles, não quis olhar, pus os olhos para baixo, tudo o que queira era que a situação desaparecesse, que houvesse um buraco debaixo dos meus pés por onde pudesse fugir.

Depois da situação acabar senti – ‘eu sou isto’, sendo que ‘isto’ era algo não muito agradável. Mas sendo agradável ou não, o facto é que a frase ‘eu sou assim’ não exprimia uma compreensão, mas uma incompreensão. Uma incompreensão que resultava do bloqueio de não ter sido capaz de viver a situação plenamente. Se eu tivesse vivido a situação plenamente, provavelmente o meu mundo do Sol ter-se-ia conjugado com a luz daqueles rapazes, teria sentido o seu ódio, a sua revolta, os seus próprios medos e angústias, resultado de outras tantas inquietações e humilhações, e teria respondido com o meu próprio Sol, teria feito eco das suas dúvidas, e, estaladas ou não, a verdade é que o pensamento final seria muito menos acerca de mim ou deles, mas dos sentimentos que nos teriam atravessado a todos, iluminado a todos, esmagado a todos, triturado, amassado, comovido, destruído, mas sempre o de uma presença contínua, que não se deixava fixar em mim ou neles, mas que apenas se tinha encontrado ali, naquele ponto, como o mesmo olhar vendo-se a si próprio de três perspectivas diferentes, e depois voltando-se a afastar, alheando-se um pouco, mas mantendo a memória daquele encontro, consigo, de planetas diferentes, mas alimentados pela mesma Luz.

Deixem-me dar outro exemplo. Por vezes penso que sou inteligente. Isto também não é uma compreensão mas uma incompreensão, que resulta de um bloqueio. Na verdade, quando penso não sei de onde vêem as palavras, mesmo neste momento, poderia pensar-se que sei o que vou dizer a seguir, ou onde vai levar este texto, mas sou apenas meio observador, meio criador, e aprendo com as palavras tanto como as invento. Tenho de escrever o texto para saber o que diz, também eu não aprenderia se não o escrevesse. Ao escrevê-lo é como se lesse algo de quase completamente novo, algo que está em mim como raiz, mas que não se apresenta de modo claro e distinto, de certo modo, escrever é como falar com alguém cujo pensamento me está em parte escondido. Então de onde vem o pensamento, o que é pensar? Serei ‘eu’ que sou inteligente, ou terei apenas a graça de pensamentos ‘inteligentes’ (ou que eu acho inteligentes) passarem através de mim, e de os poder ler e ouvir depois de os expressar? E afinal o que sou «eu», e em que me distingo dos outros. (Como dizia o Wim Wenders, nas Asas do Desejo: porque sou eu eu e não sou tu?) Estas perguntas são difíceis, paradoxais, abissais até. Por isso remetemos tudo para debaixo do tapete e dizemos, 'eu sou inteligente, ou eu esqueço-me das coisas, ou eu etc, etc, etc.

São marcas, formulações, rótulos, úteis talvez, e que nos definem na grande paisagem da vida e dos acontecimentos. Eles não se limitam a catalogar, mas definem e restringem. Por exemplo se me acho uma pessoa fraca não farei, nem sequer tentarei fazer certas coisas. Se me acho com poucas capacidades oratórias ou de escrita não arriscarei a escrever um poema ou algo que expresse as minhas opiniões. Se me acho tímido e inseguro evitarei desconhecidos. Mas todas estas capas são na verdade bloqueios, coisas que recusámos pensar num momento ou outro da nossa vida. Eles condicionam-nos, não tanto pelo que são, mas pelo que não são: isto é ausências de compreensão, de experiências, que catalogámos com uma palavra (tristeza, insegurança, inteligência, etc). Na verdade, o que precisamos para as desbloquear. Para as deixar fluir e fruir em nós como momentos de extraordinária beleza e aprendizagem?

Eu diria, é preciso reaprender a ver o mistério. A dizer que não se compreende o que de facto não se compreende. Assim abrimos as portas à interrogação e à experiência, são as palavras, postas como pensos rápidos em cima de uma ferida, que impedem que a vejamos e que ela se cure. Porque na verdade não se trata de uma ferida, apenas nós a vimos assim, trata-se de uma planta lindíssima que exige o sol do meio-dia para nascer e crescer.

To'a,
Pedro.


PS – o facto de ser uma incompreensão quando digo ‘eu sou assim’ não tem tanto a ver com o que afirmo de mim (no fundo aquilo que afirmo é uma das minhas possibilidades), mas com aquilo que nego. Isto é o problema não tem a ver com eu dizer que sou ‘estúpido’, mas com o facto de, quando digo isso, não estar também a ver que também posso ser ‘inteligente’, ‘esperto’, ‘atrevido’, etc. Seja qual for a atitude psicológica, existe algures uma chave para ela. Existe uma chave para a coragem, para a inspiração, para a autenticidade, para tudo. Basta descobrir a chave que desbloqueia aquele pormenor específico. Por outro lado o facto de haver chaves mostra-nos a diferença entre o que somos e o que podemos fazer. (O que nos levaria provavelmente àquele mail do Guilherme sobre a diferença entre aquilo que se é e desempenhar um papel.)