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Ciência e espiritualidade...
(...na sequência da conversa sobre a aceitação...)

 

Pedro — Já agora, falaste na cena da ciência... A ciência diz muitas coisas que são facilmente demonstráveis, tipo, podes dizer que se A vai contra B e B vai contra C, com aquela velocidade, dá um impulso tal que, se num momento t0 acontece x então num momento t1...

Guilherme — Teoricamente, porque quando puxas para a realidade tens que eliminar montes de factores, e nunca consegues eliminar completamente os factores todos...

P: Eu sei, mas mesmo assim consegues fazer coisas incríveis, computadores...

G: Sim, sim, sem dúvida...

P: Aquilo que eu te queria perguntar é: porque é que não podemos fazer a mesma coisa em relação a certos assuntos mais espirituais? O que é que nos impede?

G: É muito simples. O problema é que envolve cada vez mais parâmetros e mais variáveis; muito mais variáveis, porque a diferença é que estamos vivos. Como a matéria não está tão viva – há quem diga que está morta, mas nada neste mundo está morto, está... menos morto ( risos ), está um bocadinho mais perto do morto – é muito mais fácil. Com as coisas vivas, é muito mais difícil, porque mete mesmo muito mais variáveis, e variáveis que variam em cada momento e de forma muito mais orgânica e intrincada do que na matéria. É muito mais complexo, porque se move de forma orgânica, total, e aí é como se tentasses apanhar uma enguia, está-te sempre a escorregar.

Mais fundamentalmente a questão é que não basta apanhar a enguia. Aí é que falha a ciência num sentido mais profundo, porque a ciência tenta capturar. E capturar (no campo da espiritualidade) não chega, é capturar e deixar ser capturado. Este aspecto é muito importante, porque o método da ciência funciona muito bem com coisas mortas, mas com coisas vivas... fica um bocado aquém. E a prova é que, por exemplo em relação à psicologia, muita gente diz que a psicologia não é aquela grande maravilha, porque as pessoas não são caixinhas, as pessoas não são coisas, as pessoas não são definíveis... a psicologia tem a sua função mas é no sentido assim mais grosseiro, e as pessoas são muito mais subtis, muito mais finas, muito mais... subtis... estás a ver?

Por isso, se queres coisas muito mais profundas, como a espiritualidade, então é mexer num aspecto... muito mais subjectivo. A grande questão é essa, e com a ciência é muito difícil lá chegar, porque a ciência tem sempre a visão exterior, não se envolve. Aquilo que já falámos várias vezes. Para compreender o total tem de haver uma subjectividade objectiva, a ciência mete de lado a subjectividade, fica só o objectivo. E o objectivo é pouco, dá só para as coisas físicas, para coisas vivas tens de ter a subjectividade, tens que ter a tua maneira como te envolves, como te ligas, que não dá para copiar depois, mais tarde, mas dá para inspirar. Para outras pessoas fazerem também a sua subjectividade objectiva.

Essa é que é a dificuldade da ciência. Estamos muito masculinos e devíamos pôr também o lado feminino. E a ciência é muito masculina.

P: Quando dizes, não é só capturar, também é ser capturado, isso quer dizer o quê?

G: Quando apanhas uma flor, há um aspecto físico: o tamanho, a cor, a química, etc. Tens de matá-la, dissecá-la... mas há outro aspecto, que é: quando olhas para ela, o que é que ela desperta em ti, a cor, a fragrância, estás a ver? E isso dá muito mais vida e dá muito mais compreensão e uma relação muito mais superior e mais vasta, porque não é uma coisa que fica ali catalogada num ficheiro, que depois pode ser utilizada com um sentido utilitário. Não, aquilo eleva-te, transforma-te, se te deixares elevar consegues fazer um mundo melhor com aquilo.

P: Não é uma cena totalmente definível?

G: Não, é subjectiva. Mas que influencia imenso. É como no Oriente, explicavam coisas com metáforas e com poesia; e a vida tem muito mais a ver com poesia do que com prosa. Percebes? E para compreendermos a vida temos de ter essa relação com a vida que nos dá muito mais poesia. Porque, a prosa é muito útil, mas é isso, é útil! E será que o que interessa é ser útil? Muitas vezes as pessoas tem as casas todas eficientes, tudo útil, electrodomésticos e sistemas de aquecimento que nem precisam de carregar nos botões, etc... e será que isso contribui para a felicidade?

Utilitário é a base, estás a ver?, o tempo, a fragrância, o ficares a meditar, o deixares a coisa, o olhares para uma rosa e deixares crescer aquilo dentro de ti, dá muito mais para compreender esse aspecto que tu estavas a falar, e a que a ciência não pode chegar tanto. E este aspecto não é do Oriente, nem é dos poetas. O que estamos a falar é um todo [que incluí tanto a ciência como a poesia]. Porque sem termos o mínimo que precisamos – abrigo, comida, etc – tu olhas para uma flor e a flor não te diz nada, ou pouco. E a espiritualidade é uma espiritualidade pouco expansiva. Não transborda. Por isso o aspecto da totalidade é muito importante, tal como o aspecto da coisa te modelar, é o lado feminino. A gente nem dá muito valor às coisas femininas [isto é o que dá uma conversa entre homens ^_^], a mulher decora e está decorado ( risos ). Mas se uma pessoa viver sozinho e depois está a viver com uma mulher e for minimamente sensível a essas cenas vê que, pequenas coisas, ali um paninho, ali uma coisa que em vez de estar assim está assim, faz uma grande diferença. Só que temos isso por garantido e nem sequer ligamos.

E então é a subjectividade objectiva. Subjectividade porque somos todos diferentes e a maneira como abordamos as coisas é única. Mas objectiva porque nos entendemos todos e sentimo-nos todos ligados numa unidade.

P: E é dessa parte objectiva que podemos falar, ter um discurso...um discurso para todos.

G: Sim, sim...

P: Porque enquanto estamos a ter uma relação um com um podemos falar especificamente daquilo que nos liga àquela pessoa, quando estamos a falar com todos tem de ser o objectivo, o que liga todos.

G: Exactamente. E quando temos a nossa subjectividade objectiva, conseguimos inspirar muito mais as pessoas, não é preciso estar a dizer grandes coisas, fora isso, acaba sempre por ser uma doutrina. Falaste na ciência mas eu não punha só a ciência aí, mas... no fundo... todo o conhecimento ( risos ).

P: Então isso quer dizer que aquilo que estamos a fazer aqui não é conhecimento?

G: Não, se não houver envolvimento da parte da pessoa, não. Senão (sem envolvimento) não passa de conhecimento, de conversa.

P: Portanto o objectivo aqui [em relação à aceitação] não é expor... mas tu disseste que é prático, portanto parece um conhecimento... [note-se que há uma diferença radical entre conhecimento e compreensão. Aqui usamos conhecimento no sentido de algo em relação ao qual não existe compreensão, isto é, envolvimento. É um conhecimento externo, que se repete, mas cujo significado profundo não foi experienciado por aquele que o profere. Eu na altura não estava  aperceber-me bem disso.]

G: Se a pessoa praticar, olha!! ( risos ) Não, é que é assim, o que nós estamos a falar aqui é uma coisa bastante global, que não é fácil de fazer. Mas se fizeres, tens um grande resultado. Porque o problema sempre, quando olho para a situação das pessoas, é não serem globais. Uns são para a ciência, outros são para o esoterismo, outros estão para a religião, outros estão para a poesia e para as emoções, etc, e, sempre que tu falas do outro lado, há ali um choque, há ali uma dificuldade, e estão sempre em defesa. Se tu meteres tudo ao barulho – e isso é muito giro, às vezes a falar com pessoas «científicas» – tu metes tudo ao barulho, ou seja, elas têm razão e não tentas impor, mas mostras que aquilo também faz parte – sem tentar impor, ou seja se elas quiserem querem, se não querem não querem – as pessoas relaxam imenso. Porque o problema é sempre «não é este certo é aquele certo». Se meteres tudo ao barulho e a pessoa, se quiser vai, se não quiser não vai, fica tudo muito relaxado. E a questão é esta, é meteres tudo ao barulho, mas depois tens de ir. E isso é que é o Yoga e as grandes coisas, não quer dizer que as pessoas do Oriente tenham isto, mas é uma «ciência» da plenitude. O Kung Fu é plenitude, o todo, a fusão. Aquilo que os grandes mestres –   estou a falar ao nível dos Budas – tem a ver com um sentido de integração com o todo. E aí não podes rejeitar nada, tens de saber lidar com isso tudo e «casar» essas coisas todas umas com as outras. Saber que há um momento para usar a religião, que há um momento para usar a poesia, que há um momento para usar o esoterismo, que há um momento para fazeres rituais, que há um momento para tudo... Para ti pode não ser tanto, mas para a outra pessoa pode ser. O que interessa é ser autêntico nessas coisas que se faz.

E é isso que nós lançamos aqui – a nossa experiência – a plenitude traz um grande resultado. Agora, isto é uma música, quem quiser ouve e canta connosco, quem não quiser não canta. A nossa experiência é que, se cantamos esta música... é forte. É, mais do que vem escrito nos livros e do que foi dito, é a nossa experiência. Se fizer sentido, se esta música que nós cantamos ressoar, fizer ressonância com a vibração que essa pessoa tem no interior, isto é, se a pessoa já estiver minimamente neste contexto, faz! Se não fizer não faz e não andamos a dizer que somos mais que os outros. Agora, esta é a nossa música. E esta música não é só a nossa, porque há pessoas que podem usar uma linguagem completamente diferente e chegarem à plenitude na mesma. E até sem usarem palavras nenhumas! Há muitas maneiras de ser pleno. Mas como estamos numa época de comunicação e estamos no século XXI, o Kung Fu não pode ser um Kung Fu de rituais, mandamentos, doutrinas, etc, inspirado nessas coisas que muitas as artes marciais têm. O nosso Kung Fu não é assim (de recitar regras), é um Kung Fu de comunicação. E é isso que nós fazemos, a nossa música é essa. Quando aceitamos, e aceitamos implica aquilo que falámos à bocado, vai trazer um grande resultado. Vai pôr-nos no caminho de um grande resultado. Agora cada um é que...

P: Ou seja não se trata de um conhecimento mas de dicas para uma compreensão, ou de uma sugestão para as pessoas poderem, se praticarem, chegarem eventualmente à sua própria compreensão das coisas.

G: Exacto. É um aliciamento às pessoas, mas esse aliciamento só faz sentido para quem está muito próximo. Porque chegarem aqui e dizerem que sim e tu veres que não tem nada a ver. As pessoas vão chegar a uma altura em que vão desistir. Isto não é uma seita, em que tu só tens que dizer que sim, que somos os maiores e... ou estás muito próximo, ou uma pessoa está muito próxima – e é um degrauzinho, ou está nesta onda ou muito próximo desta onda – e sente-se muito bem e isto é um catalisador, ou então não faz sentido nenhum. Porque isto não é uma seita. A gente não quer cá pessoas a dizer que sim, que «tens razão». A gente está é a aliciar ou a captar as pessoas como nós.

P: Mas há muitos, muitos caminhos, não é?

G: Óh, então claro! Há grandes autoestradas, depois há estradas secundárias, depois há estradinhas, ruelas, carreiros, depois chegamos à altura em que o nosso caminho é o caminho que nunca foi trilhado, um caminho que fazemos a cada momento. Então as grandes estradas são as grandes coisas, os grandes sistemas, as religiões, as ideologias, tudo isso.

P: Mas no fundo o que interessa é ser autêntico, não é?

G: Completamente.

P: Porque é isso que dá a envolvência e a compreensão das coisas, que surge quando há autenticidade e aceitação. No fundo é esse Yin e Yang, aceitação/envolvimento que dá a síntese que é a compreensão – de eu com o outro. No fundo é também aquilo de que tínhamos falado sobre a consciência ser um espelho...

G: Exacto. E quando nós aceitamos, porque há uma parte do nosso espelho que está sujo e não consegue reflectir certas coisas, conforme vamos limpando mais o nosso espelho, vamos purificando, vamos conseguindo reflectir, e ao reflectir muito mais coisas vemos um puzzle num todo, e ao vermos o puzzle num todo vemos que está tudo tão ligado. Faz tudo tanto sentido, umas coisas com as outras. Senão vemos só as coisas meio tortas: e ali está errado e ali está certo (num sentido absoluto – de viver dividido ).

P: Pois, mas para haver esse reflexo, tem de haver por um lado a aceitação do exterior – que é aquilo que chega ao espelho – e depois por outro lado tem de haver o próprio espelho que é a nossa realidade, a nossa individualidade, a nossa autenticidade, a nossa verdade...

G: E tem de haver a luz do sol ( risos )... Pois, tem de haver luz em algum sítio, para reflectir.

P: Pois é... é verdade... e isso vem da autenticidade também, não é?

G: Sim, vem de... exactamente. O espelho somos nós, a realidade é o que nos rodeia, e a luz, é... o sentido da vida, o que ilumina, o que permite que a consciência exista, estás a ver?

P: A conexão.

G: É a conexão, é o Deus, é o que lhe quiseres chamar, é... o Cosmos...

Pronto, era isso, e que penso que é a nossa mensagem principal no Kung Fu e que é a aceitação, como meio de chegar àquilo que as pessoas querem, que é o prazer. Agora, dentro do prazer, o que é que cada um quer como prazer... toda a gente quer prazer ou êxtase. A chave para ter isso é a aceitação/compreensão. Depois, cada um tem a sua forma, através do Kung Fu, através da relação com as pessoas, o trabalho aqui, a fazer aquilo, arte, etc, depois cada um é que faz à sua maneira. Tudo para facilitar o caminho das pessoas, que é isso mesmo, facilita-se o caminho. E ao facilitar o caminho das pessoas, as pessoas já não precisam de andar em auto-estradas, sempre, para estarem seguras, nem em estradas, mas já podem aventurar-se por caminhos que nunca foram trilhados, porque no fundo, o nosso caminho é único, não há nenhum caminho como o nosso. O nosso caminho verdadeiro é um caminho único que nunca foi trilhado, porque nós estamos a expandir para sítios que nunca foram... para o mistério. Como se fosse uma coisa como o Big Bang em que tudo expande, e onde todas as coisas estão a ficar mais distantes umas das outras, e estão-se a criar sistemas dentro de sistemas dentro de sistemas. E nós vamos para sítios... por isso é que tu vês, duas pessoas iluminadas nunca estão muito próximas. Não faz sentido. Eles estão... a expandir, a fazer as suas cenas. Uma pessoa faz uma coisa, já fez, e quer fazer outra, sempre assim, não se fica ali agarrado. Se for verdadeiro quer mais, expandir, expandir, expandir... e por isso as pessoas vão sempre expandindo por sítios que nunca foram percorridos.

Só que, pronto, há dificuldades e essas coisas todas, porque nós fazemos parte de uma cena una e estávamos muito bem, mas aquela luz não era bem a nossa. Estávamos confortáveis todos juntos e ao sair fora do Paraíso... tivemos que religar [daí vem a palavra religião], religar essa energia e isso é que, às vezes é lixado. E frequentemente perdemos, porque o religar é uma aceitação incondicional e total e às vezes nós ganhamos confortos e ganhamos posturas e pensamos que isso é que é um religar. Mas isso não é nada, e por isso muitas vezes, tem, de tempos a tempos, a matéria ir-se embora, as seguranças, haver falhanço, a memória de coisas do passado, de poderes e não sei quê, vai-se tudo embora, e voltamos outra vez, nus, para ver se confiamos...