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(1) Os Guardiões do Conhecimento - (2) Ensinar a Criatividade? - (3) Viver livre em sociedade -
(4) «I celebrate myself» – O Guru dentro de nós

040512 Pontas Soltas – Conversas com Guilherme da Luz



IV– I Celebrate Myself – O Guru dentro de nós

G: Tudo isto tem a ver com uma carência que a gente tem, e a menos que estejamos «cheios de nós próprios» no bom sentido – não é o ego, o mau sentido – teremos sempre esta dificuldade de relacionamento com os outros. Ou seja, tudo é uma questão de nós nos preenchermos mais – I celebrate myself – mas num sentido muito pessoal e muito natural, em que todos os momentos são importantes. Mas para todos os momentos serem importantes tens que dar um significado às coisas, a tudo aquilo que estás a fazer, cada momento tem de ser especial, e cada momento, ao ser especial, tu vês que só podias estar a fazer aquilo. Ou seja em cada momento tu estás sempre rico, não te estás a preparar para qualquer coisa especial – para as férias ou para o fim-de-semana, ou para quando acabares não sei o quê... – ou seja cada momento tem de ser especial. E ficas tão cheio, no bom sentido, que é muito fácil aplicar isto que eu estou a dizer.

P: Pois, de facto é preciso encontrar esse equilíbrio...

G: E o equilíbrio faz-se em várias frentes, e principalmente, a pôr em prática aquilo que a gente percebe. Eu gosto muito do Rajneesh quando ele diz «eu não sou o guru, eu não quero ser guru: eu quero é despertar o guru que existe dentro de vós.» Quer isto dizer que, quando estás numa situação qualquer, tu tens de despertar algo dentro de ti a dizer: «Isto é chato: agora podes ir embora ou podes ficar. Ou vais-te embora e assumes, não queres saber, estás na tua. Ou, se isto faz parte do teu caminho, crias um significado e enfrentas isto.» E então a gente enfrenta as coisas, fica em silêncio, e as coisas «falam connosco» se aquilo for o nosso caminho. Pronto, e então tens o guru a falar contigo. Claro que, como base, para tu estares em silêncio na confusão, tens que ter uma base boa, tens que fazer exercício físico regulamente, tens que te alimentar bem, tens que descansar bem, e também tens que conduzir os pensamentos e coisas assim..., e então é muito mais fácil: tens a base para poder estar em silêncio e conhecer as coisas e as coisas se revelarem, fora isso às vezes é muito difícil. É difícil chegares a uma grande confusão, ficares em silêncio e observares as coisas com profundidade, é normal, não se consegue. Mas é isso, tem que se despertar um guru, e a cada momento haver algo para falar contigo. Se a gente tem tanto conhecimento, com tanta coisa vamos tendo uma coerência e essa coerência, estás a ver?, que não tem palavras, é o guru dentro de nós. Aquele que traz a luz, aquele que traz o sentido, em cada momento. Em cada momento explica-te: «olha isto aconteceu por causa daquilo» ou seja, dá um significado às coisas.

E é isso, não basta só fazer as coisas, chega a uma altura em que «pronto já está feito», não vão mais longe, seja onde for; mas o Kung Fu sempre foi uma área que levou a superar isso: é que em cada momento tens de dar significado ao que está a acontecer. Ou seja, não basta só fazer flexões. Ok, no início fazes flexões e ficas com o corpo porreiro, mas depois do corpo porreiro o que é que acontece? O outro lado: tens que engordar, tens que deixar de ter o corpo porreiro! A não ser que dês um salto para outra coisa a seguir, que é a perfeição estética, a harmonia, etc. Depois não descansas nisso, passa para outro lado, saúde, passas para outro lado... ao mesmo tempo que estás a evoluir – a evoluir da maneira mais natural, que é sem esforço, centrado só na respiração, captando outras energias – mas estás a fazer isto para quê...? para o Sonho . O Sonho para quê? Para o prazer. E que forma é que isso tem? Tu e os outros. Estás a ver? Ou seja, cada coisa que vais alcançando é um salto para outras e é isso que faz com que uma pessoa esteja tantos anos a fazer Kung Fu... pelo menos com prazer!

Porque é possível estar ali a aguentar, como as pessoas que trabalham. Mas é assim, porque cada coisa tem sempre qualquer coisa mais à frente, ou seja, há coisas muito importantes na vida e a pessoa conecta com o que está a fazer, e sente que, se quer alcançar aquilo, tem a ver com a maneira com a maneira como está a fazer isto, com o passo mais à frente. E então isso é que é despertar o Guru dentro de nós. E isso é muito importante. É haver sempre algo acima de ti, silencioso, a dar-te instruções.

P: A mostrar o caminho...

G: Sim. Só que ele não te diz o caminho para tu estares assim [a seguir], ele vai-te dizendo aos poucos, porque o caminho é sinuoso. E tu vês uma coisa que vês e dizes: «Ah!! Pronto! Grande significado. Já percebi, já percebi!» E chega a uma altura em que, pfiu!, vira-se tudo ao contrário, e tu ficas «É pá, mas era e agora já não é?» Gosto muito daquela carta do Zen Tarot do Rajneesh que é o The Fool; the fool no sentido daquela pessoa que confia, confia, confia, mesmo apesar da experiência. Porque é assim, tudo isto que estamos a falar, isto vai tudo para o lixo!! Percebes? E então, uma pessoa confiar em tudo, apesar de as coisas irem todas para o lixo, é porque sabe que: isto vai para o lixo, mas depois vêm outras.

P: E vai para o lixo porquê?

G: Vai para o lixo porque isto não é eterno! Isto faz sentido agora neste contexto que eu estou a falar contigo e tem um sentido de uma aura eterna. Mas isto daqui a uns tempos, mais à frente já é lixo. Percebes? «Verdade repetida, é mentira.» Tudo aquilo que se pode repetir já é mentira, e é isso...

E isto é muito giro, a questão é a confiança, porque quando a gente desperta a confiança nas coisas, mesmo que as coisas vão para o lixo, tu tens sempre; tudo corre bem. A pessoa fica sem uma perna e a pessoa continua a confiar, e por confiar, vê que vem uma coisa tão boa que nem precisa da perna para nada. E tudo até chegar a altura da morte, e a gente abraça a morte, e graças a esse abraçar a morte, vem uma vida muito mais forte.

Quem diz isso em termos radicais diz isso em pequenas coisas: está tudo encaixadinho, a gente já percebeu como é que as mulheres são e de repente, bum!, vai tudo para o lixo! E uma pessoa continua a confiar e percebeu: Ahh!! e é como aquelas cenas do computador, os upgrades (risos) Estás a ver?... e nunca mais acaba. E é este processo, não estático, que é importante.

P: Eu acho é que às vezes temos dificuldade em ver o que está a seguir, não é? É tipo, às vezes a pessoa está a fazer as flexões, faz as flexões, faz as flexões, e já não está a saber muito bem para que é que aquilo serve...

G: Mas aí a pessoa tem de criar um significado. Lembra-te que nós temos um treino em que temos a liberdade de cada um sair fora do que está a acontecer e fazer a sua própria cena. Temos os dois aspectos. Por isso a pessoa sai fora e entra, sai fora e entra, e medita acerca de muita coisa, e vai construindo a sua cena, respeitando o seu feeling e entrando saindo, e depois vê «ah, eu estou a ficar preguiçoso, então vou outra vez para o que está a acontecer» depois sai... e vai despertando essa coisa de ver a cada momento o que é que é autêntico, o que é que é real. Neste processo todo há muitos falhanços, mas aceita-se o falhanço, não tem problema. Porque aceitas o falhanço e vem uma luz logo a seguir. Parece que é um bocado criancice da nossa parte querermos as coisas garantidas. As coisas nunca são garantidas. O que é garantido é exactamente isso «nada é garantido». E ao aceitarmos que nada é garantido, está garantido que tudo o que tu quiseres é garantido!! Só que tem que ser uma coisa mais dinâmica, mais adaptável, mais viva.


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro,
em O Guardador de Rebanhos, 8-3-1914

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