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Sim Senhor! Dizia um. Não Senhor! Dizia outro.
Era importante não mostrar. Destilar bem as emoções de modo a ficarem bem em palavras adequadas.
Adequadas a quê? Essa era a pergunta a que ninguém sabia responder.
Adequadas às circunstâncias, é claro, às situações. É preciso ser simpático para alguns, e duro para outros, e circunspecto por vezes, e carinhoso ainda outras, e amigo e gentil outras ainda. A arte da vida é uma ciência que se aprende nos corredores, desde a infância.
É preciso saber vestir. Não ténis, mas sapatos duros, não t-shirts, mas camisa e gravata e fato de custo alto, que a vida não está para menos.
É preciso saber vestir, as palavras e os sentimentos, e as intenções e os objectivos. Assim somos moldados, para todas as circunstâncias.
Mas assim não acontecia com Alice. Alice era uma jovem burguesa, numa altura em que todos eram burgueses. Dos comunistas aos fascistas nacionalistas e monárquicos. Era a burguesia da comida fina, das palavras pomposas e dos grandes projectos.
Alice participava em tudo, ouvia tudo, discutia tudo, com grandes proposições e muita propriedade. Era sóbria q.b., e adequada q.b., sedosamente sedutora, calmamente charmosa, com a palavra própria sempre na ponta da língua.
Os capitalistas não tinham escrúpulos mas acabavam por produzir o bem social, os comunistas eram utópicos na imagem que faziam da humanidade, os nacionalistas queriam recuperar as coisas boas da tradição mas faltava-lhes uma certa concepção da liberdade, os democratas só queriam alcançar o poder mas criavam um estado tecnocrata capaz de gerir menos mal a economia e a tecnologia, etc, etc. Chopin era muito triste e romântico, Bach genial mas sem dilaceração, Beethoven um génio apaixonado, e Mozart o mestre da alegria, etc, etc... E tudo isto com calma e moderação, as palavras apropriadas, os pais a ver, gentis e calmos, apreciando a beleza imaculada da filha que eles viram educar.
Mas o que amavam eles, o que amavam todos no prazer imaculado que saía dos olhos de Alice? O que viam eles nela que não encontravam noutra mulher (e muito menos noutro homem)? Que beleza era aquela, de onde provinha?
Para compreendermos isso temos de perceber como eram as outras pessoas. É que nem todas eram como Alice, mas todas o desejavam ser. Algumas eram perversas, outras monocórdicas, outras excessivamente engraçadas, outras idiotas, outras muito formais, outras capazes de enganar, outras ... Enfim, seria difícil descrever todos os excessos que podemos encontrar nestas pessoas.
Mas é fácil de ver que em todas elas o mal é o mesmo se olharmos para um pequeno pormenor: o quarto de Alice.
O quarto de Alice ficava num dos extremos Sul da casa. Lá no alto. Só lá entrava ela e uma pequena senhora da limpeza, muito boa, mas também muito monocórdica. Dentro do quarto Alice estava só. Entregava-se então às mais doces divagações, aos mais altos voos do pensamento. Durante muito tempo fechava os olhos, fingindo dormir, mas não dormia. Os seus olhos captavam imagens para lá da loucura do dia-a-dia. Era o céu, e as estrelas. Via bondade e amizade e sentia por toda ela um calor a inflamar-lhe o corpo. Sentia-se então nua, envolta numa espécie de calma astral, acompanhada pelos mais deliciosos delfins e querubins, que a seduziam com toques de cetim charmosos e lhe diziam: como és bela, como te dás! E ela sentia tudo porque se dava. Dava-se aos querubins que amava, às doces veredas que se estendiam por fora do quarto. E amava o mundo todo e a ela própria também.
Quando era pequena Alice não gostava muito dos pais. Ou melhor, era por gostar deles que não compreendia o que faziam. A mãe tinha uns grossos óculos de onde dirigia o mundo e o pai, curvado pelo tempo, fazia tudo para não fazer nada, ou melhor mandava nisto e naquilo, punha e dispunha as coisas, de um lado para o outro. Baseado em conceitos, concepções, divagações, que Alice tinha dificuldade em compreender. Mas em tudo aquilo só via um homem curvado, quase desaparecido dentro daquelas fatiotas. E na mãe só via ao longe o reflexo de um olhar, muito ao longe, quase completamente escondido por detrás das lunetas.
Durante muito tempo apeteceu-lhe chorar, mas como lhe parecia que, apesar de tudo eram ainda o pai e a mãe que habitavam aqueles estranhos corpos deformados pelo tempo, foi obedecendo a tudo o que eles diziam. E lentamente começou-se a habituar às estranhas normas, às estranhas passagens de tempo. Umas vezes era cedo, outras já era tarde. Umas vezes era preciso fazer tudo a correr, noutras o tempo corria devagar. Às vezes a simpatia, outras a confusão, outras a brusquidão quase total.
Até que um dia compreendeu, quase num flash. Aquilo que a tinha salvo era o amor pelos pais, se tivesse deixado dominar-se pelo ódio das regras insípidas e sem sentido, nunca teria tido esse flash, teria certamente ficado perdida no mesmo mundo que eles. Pois, com o mundo de normas presente, Alice nunca se esqueceu de por quem é que lutava. E quem é que queria alcançar. Eram aquelas vestes as prisões, aqueles óculos discrepantes. Era isso que era preciso aniquilar, desobstruir. Outros e outras, com menos sorte que ela, perderam o amor às pessoas, deixaram-se então conter inteiramente pelas normas: Viviam não apenas por elas, mas também para elas. E depois já não sobrava nada, nenhum amor para dar. Nem aos pais, nem aos filhos, nem com aqueles com quem dividiam o leito.
Viviam num amor escondido, num refúgio inacessível a todos. Por vezes inconscientes disso mesmo. E dia após dia, passavam-se as horas, os minutos e os instantes e tudo o que restava era uma imensa e vaga dor de um passado ausente e de um presente sem sentido e sem saídas. Ou onde a única saída era a morte.
Mas fugimos ao tema. Alice tinha tido um flash. De repente compreendeu que tudo o que se fazia, fosse pôr o leite e o chá nas canecas com muito cuidado, fosse sorrir todos os dias quando dissesse bom-dia, fosse perguntar por delicadeza todas as coisas que se devem perguntar, fosse perguntar pela saúde dos outros e nunca falar de mais ou de menos... tudo, tudo, tudo o que existia servia apenas para demonstrar uma outra coisa. Aquilo que somos e o que amamos.
Aquilo que Alice era, sabia-o ela bem. Encontrava-se todas as noites nesse manto de amor que a cobria e lhe dava a alegria de poder amar. De se sentir tão bem por ser quem era. Alice sabia quem era. E sabia que só podia ser nas regras do dia a dia quem era na cama se amasse as pessoas tal como amava os querubins. Então passou a amar toda a gente. E dizia bem e mal de todos como era apropriado, e afirmando coisas aparentemente tão justas e sensatas, sem contudo serem inteligentes ao ponto de ameaçarem a conduta (ou inteligência) de alguém, conseguia amar a todos e espalhar entre todos o que só ela tinha para dar.
E assim seduzia os hóspedes e conquistou os pais, e tratava a todos com a mesma dignidade com que se trata um anjo ou que se dá aos grandes enviados do Estado. Era um amor... Cristina era em tudo semelhante a Alice e, quando se conheceram, para aí aos 19 anos de idade (eram as duas de idade semelhante), criaram imediatamente um relacionamento que cedo se converteu em amizade.
Cristina e Alice compreendiam-se melhor do que a maior parte das pessoas. E para elas era possível encontrar a solidão e a calma em qualquer lado, quando estavam juntas. Era como se o quarto viesse até elas e as enchesse de uma enorme alegria. Perceberam que havia mais pessoas no mundo com o olhar claro, e amavam-se mutuamente.
Cristina tinha uma relação diferente com os pais dela, que percebiam nela uma espécie de anjo da guarda em quem podiam confiar mais até do que um no outro (é claro que quando queriam fazer maquinações não podiam contar com ela), e os seus desejos, as suas mágoas perdidas no tempo, as suas saudades e inquietações, foram, ao longo dos anos, encontrando um lugar no seu coração. Ela era uma espécie de confidente de toda a gente, mas dava-se menos bem com as regras e convenções sociais.
E também isso acontecia entre Cristina e Alice: era Alice quem contava a maior parte das coisas a Cristina e não o contrário. No entanto, numa ocasião, aconteceu precisamente o contrário. Falavam de rapazes e de como eram estranhos e ousados os seus gestos em relação a todas as raparigas. É claro que havia maneira de os conter. Maneiras mais ou menos distantes, mais ou menos graciosas, etc. Falavam também de rapazes bonitos, quase sempre inacessíveis e cujo coração estava já preso nos braços de outra mulher. Estas eram mulheres atrozes, que capturavam os corações destes jovens anjos para os torturar como se tivessem prazer em vê-los numa cela.
Era engraçado ver a distinção entre homens e mulheres. Os homens maltratavam as mulheres depois de as possuir. Obrigavam-nas a rastejar, a implorar pela sua presença, enquanto eles faziam outras coisas, mais do seu agrado. As mulheres maltratavam os homens, antes de qualquer contacto. Era precisamente pela ausência que aumentavam o seu poder e controlo sobre eles. Na verdade, dizia Cristina, tanto os homens como as mulheres castigam pela ausência, e pela ausência aumentam mais a intensidade do desejo que o outro sofre (porque afinal só desejamos o que não temos). Mas os homens dão primeiro e depois tiram. As mulheres sabem que depois de darem já não tem mais nada para oferecer. Uns só querem uma vez, para as outras, uma só vez não faz sentido.
Alice estava decepcionada. Será que não havia outra hipótese de relacionamento? Teriam de estar os seres humanos sempre sozinhos ou em luta para afirmar as suas posições. Será que nunca iriam perceber que nada há que se ganhe, que só se pode oferecer? E nestas inquietações confessou a Cristina que, embora já se houvesse enamorado, nunca poderia dedicar-se a uma só pessoa, precisamente pelo medo que tinha de cair nessa situação de dependência absoluta. É cruel, dizia, que se aproveitem do nosso desejo de fazer alianças para depois se aproveitarem dele para nos fazer cair.
Cristina olhava com um ar meio desconcentrado. Como se estivesse a pensar noutra coisa. E depois, subitamente mas calmamente, exclamou: não é sempre assim. E depois ficou calada, enrubescendo-se um pouco as faces.
Alice percebeu que estava no encalço de um misterioso segredo, um dos primeiros que ouviria dizer a Cristina e, quase esquecida da conversa anterior, perguntou-lhe sofregamente o que queria dizer com semelhante afirmação.
É preciso explicar que há dois tipos de curiosidade. A curiosidade pura e simples, pelos factos e situações, a que é perigoso dar satisfação pois, para além do prazer que causa a quem conta e ouve, pode ser origem de graves distúrbios. E a curiosidade pelos amigos. Aqui não se trata de saber factos ou acontecimentos mas de penetrar no mais íntimo que o outro tem para dar. Ao contar um segredo estamos também, se alguém estiver atento, a contar também uma parte de nós, e quanto mais íntima for mais é revelado. Ou melhor, mais profundo e verdadeiro é o que se revela. E era este último tipo de curiosidade que Alice sentia. Cristina compreendia isso inteiramente e, depois de hesitar um bocado, começou a contar.
"Há um rapaz vadio que mora perto de minha casa. Um dia viu-me e ficou de tal modo apaixonado por mim que desde então usa todos os momentos livres para se aproximar e me ficar a olhar, em contemplação. É claro que eu nunca me tinha apercebido disso e não me teria apercebido não fosse um triste acidente que me deixou por terra um dia, à sua mercê. Mas, não, digo-te já que nunca fez tenção de me fazer mal. Mas revelou-me o seu segredo. Que pensava em mim todas as manhãs e todas as noites. E passava o dia como se estivesse a sonhar acordado, pensando em mim. Digo-te já que ele não me disse isto com nenhuma intenção de me conquistar. Pelo contrário, acho que estava simplesmente a desabafar, ou melhor, a contar-me um segredo, tal como quando se dá uma prenda a alguém. Queria partilhar o seu mundo, porque o achava belo, achava que o seu amor por mim era belo, e mo podia oferecer como uma prenda sensata.
Fui para casa nesse dia a correr. Fugindo de tamanho amor que me personificava e amarrava a um canto. Talvez seja difícil para ti perceber isto, mas quando alguém nos ama assim, desmedidamente, ficamos com a sensação que fomos aprisionadas dentro de um sonho, e que só nos deixarão sair quando nos deixarem de amar dessa maneira, e que só nessa altura poderemos então viver livres e soltas para amarmos todos por igual, e quem quisermos, uma vez mais.
Achei que ele me tinha personificado, amarrado ao chão. Criado uma imagem de mim da qual eu já não podia fugir e que só poderia levar à consumação. Imagina uma terrível luta entre Deus e o Inferno. Só que neste caso não sei quem é Deus ou o Inferno, conheço apenas a violência da batalha e digo-te, é horrível, porque sentes que não podes ganhar. Que tudo o que possas fazer é irredutível face ao amor. E que ele irá ganhar sempre. É como entrar numa batalha perdida, mas mesmo assim lutas sempre com a esperança de que poderás vir a ganhar.
- Mas isso é ridículo, ele é um rapaz do campo e tu uma rapariga de família fina, como poderia haver risco de vocês ganharem um contacto maior do que o da admiração (talvez justa) do camponês pela diva?
- Não estás a perceber. Não se trata de um amor de camponês. Ele não me ama por ser rica ou por me vestir bem. Ele viu-me, e viu-me ao longe, esta sinceridade que tu vês. (A Alice não percebia.) Sabes como é, nem toda a gente nos vê como somos. Há quem diga que somos espertas, inteligentes, bem educadas, bondosas, mas são poucos ou quase ninguém capaz de penetrar neste mundo escondido de amor que nos alimenta de noite e de dia e de onde surge tudo, mesmo a mais pequena das nossas acções. Tu viste como te sentiste feliz quando eu apareci naquele dia e te mostrei como te amava e compreendia. E partilhámos as duas o mesmo mundo. Com ele aconteceu o mesmo. Só que foi à distância, ele compreendeu-me inteiramente, e, é isto que é difícil de explicar. Compreendeu-me melhor do que parece ser possível.
Portanto, ao amar-me tanto, não pode senão amar-me verdadeiramente, o que, por ser uma coisa tão rara e que tanto sofrimento trás quando não é realizada, me leva a mim a ter de corresponder."
Alice agora estava atónita e horrorizada. Só pensava no terrível sofrimento que a sua amiga agora tinha e por momentos passou-lhe mesmo pela ideia fechar todas as janelas do quarto e viver o resto da sua vida em reclusão para não ter de passar por semelhante vergonha.
É preciso compreender que uma coisa é amar espontaneamente. Uma coisa é amar por que se quer, porque é algo que vem de dentro, porque não poderíamos ser nós próprios sem amar. E nesse caso o amor é a coisa mais linda que pode acontecer. Querer amar é a realização suprema. Mas ser obrigado a amar é justamente o contrário disso. É a morte, a crucificação suprema. Por um lado porque não podemos deixar de amar, sob o risco de trairmos o que mais profundo temos dentro de nós, por outro lado, porque não o fazemos de livre vontade mas porque o somos obrigados a fazer. E ainda por cima para a vida toda. É como se nos tivessem constantemente a extrair o sangue, o líquido da vida, para fora de nós. Normalmente, quando o amor é dado livremente, cresce cada vez mais, e torna-se cada vez mais abundante e rico; mas quando o amor é obrigado a sair, então a sua fonte torna-se estéril e a saída do amor torna-se cada vez mais fraca até desaparecer completamente. É uma morte lenta e cruel.
As duas amigas entreolharam-se e abraçaram-se instintivamente, perante um destino tão atroz. "Queria salvar-te, disse Alice, achas que se te amasse tanto como esse rapaz poderias quebrar o feitiço?" A Cristina começou a rir-se, afinal era uma ideia cómica, a amiga gostar tanto dela como aquele rapaz. Seria possível?
Em todo o caso, o certo é que os acontecimentos se foram sucedendo ao longo das semanas seguintes. A Cristina e a Alice ficaram sem se ver durante algum tempo, e depois quando se viram, estavam cheias de curiosidade para saberem as novidades que cada uma tinha para contar.
A Alice for a primeira a perguntar, queria saber como estavam as coisas com o tal rapaz. "Chama-se Zé, respondeu a Cristina, é um miúdo simples e posso dizer-te que os meus sentimentos em relação a ele mudaram completamente nestes últimos tempos."
- O quê? Como é que tal foi possível? Mas ele era o guilhotinador que te encostava à parede. Como fizeste? Deixaste-o apodrecer até à morte no teu encalço. Sabes... pensei melhor na conversa que tivemos e apercebi-me de uma das razões que fazem com que os homens e as mulheres se afastam e se tratam mal uns aos outros. É precisamente para evitar esse mal terrível a que muitos dão o nome de amor, mas que não é senão uma prisão destinada a extorquir de nós os mais doces presentes. Começo a pensar fortemente que quase todas as relações conjugais são assim, uma luta para obter mais amor, e para não dar amor. O amor é quase uma moeda de troca que importa não permitir oferecer. Assim cada um se tenta precaver dos assaltos mortais do outro e, por sua vez, procura a dignidade perdida nos assaltos que faz ao outro. Assim o homem obriga a mulher a dar-se em tudo e a mulher obriga o homem em tudo. É uma vida horrível e estou firmemente decidida a procurar alguém que não me queira amar e nem queira o meu amor. Alguém que seja apenas simpático e respeite o meu estado de espírito e a minha solidão. Alguém que me admire e respeite a minha tristeza. Alguém que não me incomode, a não ser o mínimo necessário para que haja entre os esposos o intercurso que é estritamente necessário. Uma relação assim, podes chamá-la fétida e feia e atroz e estéril, mas é muito melhor do que morrer nessa prisão de termos de dar todos os nossos frutos de amor a uma só pessoa. Ao menos, no primeiro caso, ainda podemos viver para o mundo, enquanto que no segundo, acabamos por morrer para todos, incluindo nós próprios. E afinal o que pode fazer o amante em relação a nós, depois de saborear todos os nossos frutos, senão desprezar aquilo que deixou de veicular aquilo que ele tanto queria? É por isso bem certo que todas as relações de paixão devem acabar em infortúnio para aqueles que as sofrem, porque, em última análise, também não pode ser bom para o amante ver assim transformada em flor morta e seca, aquilo que ele idolatrava, embora talvez nunca se aperceba de que foi ele próprio o causador de tanta ignominia.
- Minha querida, ouvia-te sem te falar, mas com certeza viste, no sorriso e no meu olhar, quão longe estou das tuas sombrias elucubrações. Não te espantes tanto, o caso é simples. Descobri no meu amor, nesse tal rapaz de quem te falava, uma outra dimensão de que até agora não me tinha apercebido. Bem vês, quando falava com ele só percebi quanto me amava e o que isso acarretava de mim (até porque eu não estava longe de lhe corresponder). Depois da nossa conversa o infortúnio aumentou, cada vez mais. Depois, por vezes, encontrava-o, perdido a vaguear, à minha procura, e escondia-me ou fugia, para evitar o infortúnio de eu o ver a ele - pois me lembrava dos meus pecados - e de ele me ver a mim, pois o infundia
ainda de maior amor, um amor mau, que com certeza ele não podia controlar.
Pois ainda foi pior quando, uma vez, apanhando-me distraída, me encontrou com uma flor na mão, e ma ofereceu. Foi horrível. Ou melhor, na altura houve um não sei quê de mágico em todo o gesto, mas depois, quando me lembro, essa horrível lembrança, do amor a que não posso, mas que me é exigido, corresponder, não sei que te diga. Cada vez mais tinha medo de o ver, de o ouvir chegar perto, rondar a nossa casa, e não sei como te diga, mas tive mesmo desejos de pedir aos guardas que o afastassem dali e o impedissem de se aproximar mais das redondezas.
Tudo isto, porém, mudou um certo dia. E pela razão mais estranha que possas imaginar. Ele estava sentado, próximo do jardim, com a cabeça mergulhada entre um magote de flores e pequenos arbustos. Eu estava no meu quarto e comecei por ouvir um doce choro. Muito baixo, como quem quer evitar ser ouvido. Do meu quarto não percebi quem era, mas, pensando que pudesse ser um criado ocupado por algum pequeno infortúnio que está às vezes na origem de grandes tragédias, ocupei-me a ver o que era. Fui andando (porque do quarto não se via quem se condoía) e aproximei-me do corpo agora já silencioso, hirto, estendido no chão. É engraçado, ao princípio reconheci o rapaz, mas não me pareceu ele, ou melhor, não me parecia ele. Parecia-me apenas uma pessoa triste, uma pessoa como qualquer outra. Um miúdo que tinha perdido a bola ou assim. Mas depois rapidamente me lembrei de quem ele era para mim. Voltei a refugiar-me no quarto, contente por aquela desventura ter acabado bem e ter regressado sem ele me ter visto.
Nessa noite sonhei que ele tinha ido para longe, partido à procura de emprego, e que voltara muitos anos mais tarde. Nessa altura já eu estava casada e ele ainda solteiro, mas também já se começando a preparar para andar à procura de rapariga. Acordei subitamente, com uma imensa tristeza no peito, e perguntei-me porque seria preciso obrigar-nos a tanto as dores do peito. Afinal tudo aquilo era ridículo e absurdo: quem era ele para mim? O que significava ele para mim? Nem sequer era nosso jardineiro (e ainda bem), nem sequer me conhecia, e se calhar nem sequer me podia conhecer... tão limitado era.
Mas também era errado desprezá-lo daquela maneira. Portanto decidi deixar-me de todas aquelas contradições e histórias sem sentido e amá-lo apenas por aquilo que era: um miúdo sem graça mas com todo o direito de ser amado, tal como qualquer jardineiro ou miúdo com fome tem o direito de o ser.
Armada desta nova convicção fui ao jardim no dia seguinte e lá o encontrei. Ainda me senti estremecer, mas desta vez não hesitei, nem fugi, fui direita a ele e perguntei-lhe se tinha fome. Ele ficou espantado e, parece, ainda mais triste do que antes, mas disse que sim. Então fui buscar-lhe umas maçãs e pão com compota e fiquei a vê-lo comer no jardim. Não falava muito, mas lá lhe consegui arrancar umas informações. Os pais trabalhavam perto dali, numa quinta, tinha irmãos, etc. Mas o que me espantou mais nele é que não tinha verdadeiramente nada de especial. Era o miúdo mais normal e vulgar que já conheci. Isto reforçou-me a convicção que já tinha e percebi que é o medo que nos faz criar todas estas confusões. Se te permitires olhar para as pessoas tal como elas são arriscas-te a perder as tuas fantasias, mas também perdes o medo e começas a reagir naturalmente, assim como reages a qualquer outra pessoa ou situação.
- Bem, isso não é bem assim. No vosso caso pode ter acontecido, porque eram de posições sociais diferentes, e foi fácil assumir a diferença. Mas já pensas-te no risco de te distraíres e acordares um dia com um soldado qualquer na tua cama? Quer dizer, a partir daí tudo se vai, a intimidade, as horas sozinha. Depois tens sempre alguém em cima de ti, a dizer-te o que deves fazer, o que deves pensar, quando deves sentir... Ai, ai... no teu caso não havia razão para alarme, mas acho sinceramente que a vida livre e o amor são mais preciosos num convento.
- Bem, nesse caso vais ficar certamente admirada com o que se passou a seguir. Estás a ver, nesse dia ainda estivemos a falar um bocado. E durante o resto do tempo fui pensando nele vagamente, em relances, como quem está a lembrar-se de algo que esqueceu há já muito tempo. E à noite sonhei com ele, já não me lembro o quê. Mas sei que acordei sobressaltada com este pensamento: 'ele existe!' Foi uma coisa estranhíssima. Estás a ver, até essa altura estava sempre a ver como ele me prendia e como o futuro seria medonho com as suas prisões à minha volta. A partir daí percebi que, o que quer que fosse verdade no resto do mundo, ele também existia. O facto de ele existir pôs-me num estado difícil de descrever.
Acho que é difícil de imaginar para alguém que nunca sentiu. Mas, primeiro imaginas a pessoa. E vês que é só uma pessoa, igual a tantas outras. E depois pensas na forma de a amar. Tal como amas tantas outras. E é aqui que tudo se altera, cada pessoa tem uma forma de se amar específica, mas a forma de amar este rapaz encheu-me de uma cor que eu não sei descrever. É como se ele merecesse uma infinita ternura, um infinito amor, uma infinita compaixão. Vi-o a ele como não vi mais ninguém. Mesmo até ao fundo. Quase se poderia dizer, as entranhas da alma. E percebi que o que queria fazer era amá-lo. Não era uma questão de dever ou de missão. Eu era eu própria assim. Era o que eu queria, era tudo o que eu queria.
Percebi então, cara Alice, que era eu própria que me estava a prender com os meus medos. Que tinha sido eu a inventá-los e que ele nunca me tinha pedido nada. Estava simplesmente à espera, que eu me tornasse livre e que voasse para os braços dele tal como ele sabia que o iria fazer. Porque, é estranho pensar assim, mas ele sabe que me dá a felicidade, assim como eu sei que lhe dou a dele. É difícil de explicar, mas é fácil de sentir, e não há dúvidas em relação a isto.
- E então, 'voaste' para os braços desse teu querido vagabundo??
- Claro que não! Primeiro fi-lo sofrer um bocado, porque os presentes são melhores quando temos de esperar por eles, mas depois dei-lhe a entender que ele podia ter esperança, e as coisas funcionaram muito bem. Acho que ele agora está feliz.
(É preciso aqui fazer um parênteses para explicar que tornar uma pessoa feliz não é apenas dar-lhe o que ela deseja, mas dar-lhe o que ela precisa. Quando isso é bem feito as águas do amor correm ainda mais do que é costume o que fortalece ainda mais o espírito de paz... enfim, mas isto já é outra história. O que é importante dizer é que não se pode dar tudo de uma vez. Tal como a alguém que esteja a morrer à fome não pode ser oferecido um banquete de arroz de frango, também a alguém que esteja sequioso de amor não se pode oferecer um manjar substancial. Senão acaba-se por prejudicar a constituição de quem pretendemos ajudar. É portanto preciso que o corpo esteja preparado para receber o alimento, pois só assim poderá fazer uso dele. No caso do amor, a metáfora vai mais longe, porque as almas, presas na terra, e amarradas à solidão, estão afastadas do amor há uma quantidade interminável de tempo. É portanto, como pôr ao sol uma planta que até agora viveu sempre num quarto sombrio. Ora, quando se suscita a paixão, prepara-se o corpo para o amor. Todo o homem se endireita e se põe mais belo à espera de poder aproveitar, e bem receber, os frutos do amor que antecipa. E tudo isto é necessário para que o amor se dê. Portanto, a Cristina não estava a ser cautelosa ou controladora, estava apenas a tentar não matar o jovem com a cura...)
- Não percebo nada do que dissestes. Há umas semanas estavas desiludidíssima com o amor, e desiludiste-me a mim também, agora estás toda contente, e esperas que eu te acompanhe... Minha querida amiga, não sei que deva dizer. Se por um lado pressinto que há em tudo o que me contaste um certo filão de certezas, não consigo perceber a que algo de bom pode essa história vir a dar. Pois parece-me certo que qualquer relação entre ti e esse rapaz é completamente impossível, e além disso, mesmo que o fosse, não vejo o que de bom daí se podia agoirar. Afinal, amor já tens tu para dar, a todos a quem te apresentas. O que te dá mais um rapaz... só vejo que te possa tirar, e que o que te tenta dar a ti não sejam mais que perdição e baboseiras. E tu o que lhe pensas dar, senão tristeza? Afinal, se vives assim um amor tão romântico só verás idealismos pela frente e não verás o mundo real, que é com o que temos de contar... Parece-me um caso perdido, esse entre ti e o tal rapaz, e agora, se fosse possível, ainda mais que antes, quero evitar esses amores perdidos e de perdição. Cada vez mais me convenço ser de um homem (e não de um rapaz) que preciso. Que me alimente de ternas ternuras e de quentes olhares e me abrace durante a noite para eu me esquecer do frio que faz fora de mim. Quanto mais clássico e presunçoso, quanto mais distante e confiante, quanto menos me conhecer e mais me amar, melhor. Assim terei um futuro seguro e poderei amar a toda a gente, assim como faço agora. Enquanto que tu, pareces que te preparas mais para a morte do que para a vida...
- Minha querida, companheira e amiga. Dar-te-ia razão em tudo aquilo que dizes, se achasse que era possível. Mas esse homem ideal com que sonhas é também o meu. Só que o meu é real. Dizes que procuras um homem sereno e distante, que seja capaz de te amar sem te conhecer. Mas pensas tu que isso é possível? Já te imaginas-te a amar alguém sem conheceres a pessoa? Tu quando amas sabes quem amas, e é dessa verdade indiscritível, que podes ver e sentir e reconhecer, que nasce primeiro o amor. Não é possível amar sem se conhecer. Não podes amar um estranho sem saber que é um estranho. Não podes amar um homem prestável sem saber que é prestável, ou um conhecedor sem saber que conhece. Da mesma fora, quem te ama ama qualquer coisa. Ou quem tu és ou uma imagem que tu aprendeste a dar. Mas se te ama a ti já estás no caminho que querias evitar, desse amor incontrolável, incondicional, de que eu te falava e te falo. Se queres alguém previsível, que te ame apenas do lado de fora viverás sempre sozinha. Ou talvez menos sozinha com os teus pais do que com quem dorme contigo no quarto. Eu acho que isso é uma grande perda. Porque, tendo experimentado o amor desta maneira, imagino que nada pode haver melhor, nem mais nobre, nem mais útil, mesmo para os outros, do que viver uma vida assim, repleta até mais não da vontade de dar e de dar a possibilidade de receber e de com isso aumentar a capacidade de dar do outro, e a nossa própria. É um mundo onde o amor cresce sempre e sempre mais até não haver mais barreiras. E quando sentes isso o mundo parece-te um pálido reflexo da realidade. Talvez tu penses que isto é uma espécie de droga. Um prazer que nos afasta da vida. Mas eu nunca encontrei ninguém que vivesse com outro desejo que não fosse o de amar. Sendo assim somos todos drogados. E talvez a alternativa fosse melhor, talvez, (a única alternativa que me lembro) fosse deixar de amar e contemplar o céu e a terra como um gigantesco prisioneiro de que nós somos os vírus sem sentido e sem direcção. Talvez seja preferível a clareza da razão, que nos diz que nós, tudo o que fazemos, tudo o que somos, tudo o que lembramos, tudo o que queremos, não é senão fruto de um programa viral, de reprodução de genes, que implantou em nós todas essas ideias. Que nós (tudo isto que nós somos e sentimos) não é mais do que um programa de reprodução. Talvez isso seja verdade. E não seria incoerente se fosse verdade. E nesse caso a verdade levar-nos-ia à morte. Mas, como me disse alguém um dia: "Vamos à vida que a morte é certa!" Que é uma maneira de reafirmar a aposta de Pascal. Ou seja, por outras palavras, talvez viver por amor seja um engano, mas é o único que vale a pena.
- Claro, eu também partilho o teu prazer de amar, mas não compreendo como se pode amar assim alguém. Afinal o mandamento é amai-vos uns aos outros e não 'amai este e que este te ame'. O amor não é algo de exclusivo mas que se deve dar a toda a gente. Tenho medo que essas relações tão intensas, te afastem de todos e de mim. O que é sem dúvida o que irão fazer, mesmo que fosse só pela condição social do candidato (e quanto a isso temos de ser realistas).
- Estás completamente enganada se pensas que vou ter menos amor para dar. É precisamente o contrário. Até agora a nossa fonte só se enche à noite, quando, estando todos a dormir, brincamos com delfins e nibelungos, em contacto com a vida de um tempo à muito esquecido. Mas isto, este amor, é a hipótese, é a possibilidade de receber essa água da vida, mil, dez mil vezes, mais fortemente. Este é o encandeamento do amor, é a alucinação do amor, é a imersão no amor. E assim, dia e noite, ficas ainda mais bela do que eras e ele fica mais forte do que era, e vice-versa, intimamente.
Bem, chegou a altura de deixarmos a conversa entre as nossas amigas ao seu próprio cuidado. Porque acho que já se consegue perceber porque é que tanto uma como a outra eram consideradas tão belas: elas queriam dar o que todos queriam dar, e eram assim as heroínas de todos, porque realizavam o que todos queriam ser: fontes de vida (liberdade e amor) neste mundo... Mas enquanto uns só são capazes de o fazer usando uma linguagem muito restrita, outros esqueceram por completo a sua missão e só podem agora esconder-se atrás das mentiras que inventaram para se proteger.