DragonBall 30 – A bola de quatro estrelas
Este episódio começa com a imagem do tirano. O tirano não é só alguém que está no cume do poder e controla centenas ou centenas de milhares de pessoas. Ele é cada um de nós em cada momento em que preferimos possuir para manipular, para impor a nossa vontade sobre um corpo alheio, despojado da sua própria vontade. Este movimento implica geralmente duas coisas “perversas” (isto é, que procurando a felicidade, são contraproducentes): por um lado o imperador gera infelicidade para si próprio por tentar obtê-la de algo que está completamente fora do seu controlo. Não é que os súbditos estejam fora do seu controlo, pois muitas vezes na história se mostrou que, com ideias, medos e hábitos é possível controlar milhares de pessoas até ao mais ínfimo detalhe da sua vida. O facto é que a vida lhe escapa ao controlo. O seu próprio poder de pensar, de comandar, é efémero. A sua vitória sobre os outros é ameaçada por outros conquistadores de almas e corpos, finalmente, tudo é vazio de valor, porque o que interessa ter um corpo ou milhares de corpos à disposição? Será que possuir uma cadeira ou todo o universo fará diferença a quem quer ser feliz? Não é aquele que possui mais, precisamente o mais atarantado pelas suas responsabilidades exteriores? Elas não o impedem de se dedicar àqueles temas e caminhos de evolução interior que lhe poderiam dar a felicidade? Precisamente, as preocupações com o mundo que tanto incomodam o asceta, que delas se procura livrar a quase qualquer preço, são as que o imperador procura. No fundo, procura a origem da sua própria infelicidade. Mas talvez todos nós precisemos de ser imperadores um dia, para percebermos a luminosidade que invadia os dias de Luís XIV e a miséria que invadiu a sua morte. A opulência e a veneração de todos, a alienação num mundo de vidro, amplos candelabros, doces comidas – tão alienado, pelo menos tão alienado, como os seus súbditos. Portanto esta é a primeira coisa perversa, procurar obter felicidade no poder sobre as coisas, quando estas não são mais que uma prisão. Se é verdade que o poder permite em princípio concretizar mais e melhor os sonhos que temos, também é verdade que se os meios forem superiores aos que precisamos, acabam por se tornar distracções e empecilhos, em vez de ajudas. E no fundo, além de sol, água e comida, talvez o que precisemos mais seja da companhia de seres livres e a caminho do seu próprio sonho ao nosso lado.
A segunda coisa “perversa” é eliminar ou tentar eliminar a vontade dos outros, o seu domínio, sobre o seu próprio corpo. Isso faz-se de muitas maneiras, por ideias (religião, política, “desporto” – clubes, a chamada “educação” – história, pátria – cosmologias, hierarquias, valores, etc), hábitos (rotinas, o elogio da perfeição, condicionar o corpo e o espírito para certas respostas pré-definidas), medos e prazeres (sexo e a ambição do sexo, morte e dor, doença, velhice, isolamento social, etc).
Com todas estas “armas” à mão é possível descascar o ser do Ser, ou seja é possível descascar o corpo de um animal (humano ou não) do controle do seu próprio espírito, transformando-o na continuação do seu próprio ser. O sado-masoquismo por exemplo, é um modo comum (seja no sexo, verbalmente ou por atitudes) de eliminar a vontade do outro por condicionamentos sucessivos que associam a dor a tudo o que seja vontade própria, e prazer a tudo o que seja “deixar entrar” (e dominar) a vontade do outro no seu próprio ser. Isto permite um descanso aos dois. Quem domina fica mais descansado, pois o seu medo de vazio fica (temporariamente) preenchido com esta demonstração de reconhecimento. Afinal, ele “Existe” e a prova é que as suas vontades se impõem à vontade, se manifestam, no corpo do outro. Uma tentativa de vencer o solipsismo? Para o dominado, também é um descanso, ele também sabe agora que existe, para o outro, sob o olhar atento do outro, não só ao seu corpo, mas ao mínimo movimento da sua mente. Por outro lado tem agora uma desculpa para não fazer, para não cumprir, o seu sonho. A felicidade dá muito trabalho. Todos dizemos que a queremos mas fingimos não saber que está inexoravelmente associada ao assumir da liberdade, e da precaridade de tudo. Ser feliz não é difícil, mas mete muito medo, porque implica o abandono de tudo a não ser da própria luz. Subitamente, todos os caminhos se tornam possíveis, o único mestre é o da própria razão interior, ninguém manda e ninguém sabe o que fará, ninguém sabe o que faremos, nem nós próprios, ninguém sabe o destino do mundo, ninguém sabe o que acontecerá nos próximos cinco minutos. É verdade, ser feliz implica reconhecer «que todos aqueles horóscopos estavam afinal enganados» (música do Kenshin), que somos Livres, intensamente Livres, e sempre o fomos. Estávamos simplesmente a tentar esquecermo-nos disso para não ter de enfrentar o vento e o sol da manhã, a doce descoberta a cada momento de um mundo sempre novo, sempre em mudança, de uma vida sempre em queda livre, onde o mundo é uma surpresa constante e nós nele também.
É por isso mais fácil ser-se prisioneiro. Ao menos aí as coisas são certas e seguras, e quentinhas, nos braços de outro, é sempre fácil culpar alguém quando as coisas dão mal, e sabemos sempre a quem nos dirigir para procurar mais comida ou exigir qualquer outra coisa. As exigências do proletariado, da amante, do consumidor, são sempre feitas a partir do sofá do amor; lá fora, é a intempérie, da aventura, aberta só aos velejadores descobridores de mundos sempre novos.
É assim que eu interpreto a primeira imagem, o boneco sequioso ao colo (conforto e sequiosidade), e o cigarro que se despenha na boca de uma boneca. Vontade de dominar e vontade de destruir. Todos nós somos ou já somos ou viremos a ser isso, saqueadores de espíritos; uma ampliação do espírito através da posse, antes da ampliação (milhares de vezes maior) do espírito através do amor.
A paixão pode-se aplicar a quase tudo, não só a pessoas mas a coisas, projectos, etc. A paixão é o caminho da evolução. Para muitas pessoas pode ser adquirir coisas ou pessoas, neste playground da vida. O imperador Pilaf é o protótipo de todos os imperadores, com os seus súbditos masculinos e femininos, procurando neles e recebendo deles coisas diferentes. A grande diferença entre o imperador e os súbditos está ao nível da origem das decisões, o imperador decide “por dentro” e os súbditos “por fora”, ou seja, o imperador é obedecido enquanto os outros obedecem. No entanto, e como se verá mais tarde no caso do Freezer, a diferença é mínima, porque as decisões do imperador estão normalmente delimitadas por acções relativas aos seus súbditos (como querer mais, manipular melhor, etc). Ambos portanto estão presos, imersos, neste ciclo de relações de poder.
No fundo, todo o DragonBall roda à volta deste tema, o tema da liberdade e da origem das decisões. No caso de Sangoku, essa origem é tão leve que não parece estar na própria vida.
O que é típico dos “homens fortes” do imperador é a sua segurança. Eles ascenderam, na longa escada social, a uma posição melhor, invejável. A sua segurança é dupla, por um lado sentem que ninguém os tirará desse lugar e apressam-se a garantir que têm nas mãos as cordas do poder, os caminhos que levam ao poiso bem protegidos. Por outro lado pensam, ou acreditam saber, que a sua posição é inequivocamente invejável. Ninguém poderia ser comandado e não querer estar na sua posição. Eles fazem parte da longa escada do poder que divide quem está mais acima e mais abaixo, e os seus numerosos e quase infinitos degraus de hierarquia. Eles estão acima de muita gente, quase todos. Vale a pena pensar e determo-nos sobre essa visão, o prazer que ela provoca a quem a possui, o sentimento de ter conseguido, de ter alcançado, de ser o maior de todos os outros que estão abaixo, na escada infinita que leva ao imperador.
Isto também é um tema do Now and Then, Here and There, que mostra ainda mais claramente, que o imperador apoia toda a sua força na vontade dos seus subordinados (muitas vezes mais fortes, rápidos e inteligentes), em dominar quem está abaixo deles. Enquanto o seu imperador for imperador, eles serão chefes e senhores (dos que estão abaixo - a sua subordinação é também a fonte do seu poder), ao mesmo tempo que estarão livres da tarefa de serem responsáveis pelos destinos da comunidade. Têm todos os privilégios, sem terem nenhum encargo real, nenhuma responsabilidade por as coisas darem bem ou mal. Pelo contrário, podem até pensar «quero que isto dê mal», não são obrigados a gostar. Podem aproveitar e disfrutar de todo o poder, sem terem de se comprometer moralmente com a situação. É ao mesmo tempo um aproveitar o banquete das almas enquanto se lava as mãos. Não tenho responsabilidade pela carnificina, mas aproveito os despojos. Yess, é bom ser súbdito num lugar alto. Não é preciso ser inteligente e come-se bem.
Esta imagem também é engraçada porque mostra como a beleza feminina pode ser toda tapada para acomodar uma vontade masculina externa. No fundo é isto que acontece ainda hoje, cá e noutros países (com maior intensidade onde os poderes sobre a liberdade são mais fortes e radicais). As mulheres casadas andam menos de mini-saia, blusas com menos decotes, uma roupa mais apropriada. No extremo chega-se a este fato, luvas, cinto, nada se vê mesmo em pleno sol. Trata-se de uma farda, todo o corpo e espírito é uma farda, Até os cabelos lisos, escrupulosamente alinhados para agradar a quem devem agradar. Não é uma pessoa, é uma réplica de um ideal.
Mas no fundo toda a hierarquia se baseia e alimenta neste facto primordial: mesmo as pessoas mais sãs e equilibradas, mesmo uma família ideal, pode ser (aparentemente?) derrubada pela simples força das armas, o menor de entre os menores de um exército tem ainda assim mais força do que o homem mais saudável e viril de uma aldeia, muito mais do que a mulher mais bela e amorosa. É fácil (aparentemente?) abater a beleza. É nesta “superioridade” perante a beleza que se funda o sorriso do homem forte, e, em última análise, o do imperador. Parecem pensar, “se eu sou superior à beleza, então é porque sou ainda mais belo que ela.” (na realidade são meramente fortes, tal como uma montanha ou o mar pode ser forte)
Há ainda um último pormenor. O ladrão, o miudito, que rouba as coisas a Sangoku, depois tenta vendê-las ao comerciante da vila, mas este dá-lhe muito menos do que é merecido. No fundo também ele é um ladrão, mais ou menos legalizados somos todos ladrões, militares, comerciantes, ou quem quer que seja que não aja por amor.