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- Máscaras -

— Já não me tocas como antigamente...
— Tens que emagrecer, já te disse, eras tão bonita antigamente...
— Mas eu já emagreci, já não tens essa desculpa, olha, as fotografias... Tenho o mesmo peso, a mesma firmeza, fiz tudo para que voltasse a ser como dantes... porque não me queres tocar?...
— Não sei, as coisas estão diferentes, deixa-me ir dar uma volta...

Na rua, uma lua de Junho espreitava os transeuntes que se abandonavam ao calor do verão, passeando-se sob a luz das estrelas, quase invisíveis no inconsciente colectivo, apesar de ocuparem a maior parte do céu e do mundo que habitamos.

Ao fundo o jardim... João lembrava-se daquele jardim, era tão bonito, era lá que costumavam ir passear no tempo de namorados. Porque já não havia aquela vibração?, aquele encanto de outrora?, quando um só dos sorrisos que ela dava o alimentavam para uma semana, e um só dos seus toques eram capaz de o fazer vibrar até ao centro e o fazer sonhar com um paraíso entre as saias daquela mulher...

O jardim... estava cheio de beatas... as pessoas punham, aqui e ali, uma marca da sua passagem, como para embelezar o sítio, ou melhor, para o fazerem seu... não só para dizer “eu estive aqui”, mas porque assim era a sua casa, algo que podiam reconhecer como seu. A beata no chão, e a marca dos lábios na beata, em contacto com o chão, ali, como se fossem um, como se tudo fizesse parte do mesmo.

Mas não fazia... o lixo nunca agradou à natureza... Repelia-o, não de forma activa, mas pela própria incompatibilidade das formas... João sentia-o profundamente. Quando voltou a casa Ellie já não estava lá. Ellie, um nome estranho para uma rapariga bonita... Seria bonita? Já a tinha tocado tantas vezes, possuído tantas vezes... Era como se ela agora fosse parte de si. Uma mão na sua mão, uma perna no seguimento da sua... Será que isso a tornaria mais bonita? Não teria tanta familiaridade esgotado o encanto e o mistério de quando a não conhecia?

Em parte estava contente por ela ter partido, era um fardo que não queria mais. Mas em parte sentia-se sozinho e triste. Abandonado. Uma parte de si partira. Isso era bom, pensou. Assim poderia ele também partir para outras aventuras, estava finalmente livre para a Mariazinha do quinto andar que lhe andava a fazer olhinhos há tanto tempo, ou para a Alice, aquilo sim, era uma mulher, vibrante, cheia de vida e mistério.

Mas algo não estava bem, a promessa de tantas novas alegrias misturava-se no seu peito com a tragédia de algo único que se perdera e não poderia voltar, ou talvez já se tivesse perdido há muito... mas como, como se tinha perdido um amor tão belo? Como poderia ele ter caído para os locais pantanosos de um sítio que nem se poderia recuperar com a memória? Parecia que esses tempos de alegria que tinham alimentado entre os dois pertenciam a uma vida passada, tão longínqua e diferente que nem se podia adivinhar entre os maços de cigarros e os cinzeiros cheios de beatas, aqui e ali, espalhados pela sala...

Passaram-se anos, desde que Ellie e João se viram pela última vez. Outras mãos, muitas mãos, passaram pelo corpo de ambos, muitos olhares, mas mesmo assim, só deixavam saudades, um buraco, um fundo de poço que teimava em não se preencher, em não subir, à claridade, à luz do dia.

Foi então que um dia se encontraram, naquele mesmo jardim, quase que por acaso, entre os abetos e um carvalho que se estendia alegremente sobre a relva no chão e parecia querer tocar o céu de um dia limpo e quente de Junho. O sol estava a pino...

— Então por aqui?
— Só de passagem, e tu, tudo bem?
— Estás muito bonita... tenho tido saudades...
— Na altura não era isso que dizias.
— Era o mistério, perdeu-se...
— O mistério...
— Sim, sabes, como quando as raparigas põem aquela lingerie vistosa, se aparecessem nuas assim a um gajo estás a ver, não era a mesma coisa. Acho que é inevitável, ao fim de uns anos, vais conhecendo melhor e melhor a pessoa com quem estás, e às tantas já não há mistério. Já conheces tudo, cada canto, cada curva, cada abraço, cada necessidade, torna-se tudo repetitivo, monótono, sem sabor. É por isso, talvez as relações para uma vida sejam impossíveis, ou então só para quem esteja disposto a apanhar grandes secas... em todo o caso tu és linda, não foi a tua beleza que findou, fui apenas eu que me tornei insensível a ela, à força de tanto a ver...
— Achas? Estás a ver este jardim?
— Sim.
— Está sujo não é?
— Sim.
— Já há tempos, há muito tempo, quando ainda vivia contigo, tentei limpá-lo, secretamente, pô-lo bonitinho. Pela calada da noite vinha até aqui admirar as estrelas, e, em sinal de gratidão, tirava as beatas, os copos de plástico vazios, as garrafas e caricas e lenços de papel, tudo aquilo que as pessoas deixam quando vão... Sabes o que aconteceu?
— As pessoas começaram a seguir o exemplo e a sujar menos?
— Não! As pessoas começaram a sujar mais...
— Não percebo onde queres chegar, estavam a fazer de ti parva?
— Nada disso, ninguém sabia que eu limpava. Simplesmente não conseguiam ver a beleza deste sítio sem que ela se tornasse agressiva para eles! Tu não podes ver nua não é porque não haja magia, mas porque eu sou demasiado bela para ti!
— És parva!
— Não, é verdade.
— Tás-te a passar...
— O corpo de uma mulher enfeitada com lingerie é algo misterioso mas que se percebe. Vês as portas de entrada, aquilo que está tapado mas se descobre ou se adivinha ao olhar. Enquanto a mulher tiver os seus centros erógenos bem definidos torna-se fácil, sabes onde hás-de tocar, porque ordem, onde deves ir... mas se uma mulher está toda nua tudo é terreno a descobrir. E então tens que olhar nos seus olhos, profunda e lentamente para descobrir o que ela quer, onde e como podes ir, para ir ao centro do seu prazer. E isso é assustador.
— Não percebo...
— Olha-me nos olhos...
— Pronto já está!
— Olhas-me e não me vês, não percebes. Olhas-me como uma coisa, a tua mulher, aquela que conheces-te, que tem certos pensamentos, uma certa maneira de ser e de pensar. Mas se eu estivesse nua...
— Aí está uma boa ideia...
— Ah sim? Então vamos experimentar...
— ?!
— Anda, ainda tens a mesma casa, estás sozinho?
— ?! Hã... sim, sim, perfeitamente, vamos, vamos lá...

Foi um João aos saltos e uma Ellie misteriosa que se aproximaram do quarto andar daquela casa densa em memórias, mergulhada em luz e sombra, plena de mistério, pela primeira vez há anos, esperando os jovens desafiantes e apaixonados, vibrantes, que dela agora se aproximavam.

— Pronto, agora fecha os olhos...
João não diz nada, mas pensa “Ai, ai, que boa surpresa me havia de calhar, nem acredito”
— Já podes abrir.

Ellie estava nua diante dele. Não apenas nua, mas descaradamente nua, desafiantemente nua. Não parecia particularmente excitada, apenas ela própria, tal como estava lá em baixo no jardim. Parecia simplesmente impossível a João iniciar qualquer tipo de aproximação sensual directa a Ellie, ela apenas o olhava com o prazer de ter apanhado uma presa, ele estava confuso e parecia que ela sabia que isto iria acontecer...

— Então é uma ratoeira – disse ele – vieste aqui e fizeste-me estar todo em pulgas, para agora nada!!
— Nada? Ninguém disse que era nada... começa vá!

Ele começou, parecia que as coisas se compunham... abraçou-a ternamente, conhecia cada milímetro do seu corpo e sabia como reagia, não havia de ser difícil.

— Assim não – disse ela – quero que continues a olhar para mim, olha-me nos olhos...

“Bolas que está a ser difícil” pensou João, mas só disse:
— Queres que continue a olhar para ti então?
— Sim. E sobretudo quero que me olhes como realmente sou. Quero que imagines que tu és eu, o que sinto neste momento, nesta posição, quero que saibas o que espero de ti, o que vivi para chegar até aqui, porque estou aqui, em suma, quero que sintas o que sou e quem sou...

Ele olhou para ela atenta e lentamente. A tensão desaparecera do seu corpo, como que por magia. Agora estava tão excitado como ela. Olho-a lentamente e compreendeu que o que a movia não era tanto o prazer, mas o sentimento de desprezo a que tinha sido votada, ela queria mostrar-lhe um ponto, queria mostrar-lhe qualquer coisa que ele ainda não compreendia bem, mas que estava encerrado naqueles olhos profundos, para os quais ele tinha tantas vezes olhado, mas que tantas outras vezes tinham estado escondidos sob a sombra de um perfume, de umas cuecas de renda, de um body rendilhado...

— Então és assim, tu, nua – disse finalmente – bem, não especialmente interessante...
— Obrigado... mas queres dizer não especialmente erótico. É porque não olhaste bem... O que te apetece fazer?
— Bem, acho que nada?
— Ok, queres dizer, “não quero ir para a cama contigo”. Então faz... nada. Melhor ainda... faremos ambos... nada.

E estenderam-se ao comprido, mão na mão. Olhando o céu por detrás das cortinas e sentindo o sol que lentamente se espraiava sobre o quarto, sobre o seu interior e fazia esquecer as diferenças entre o dentro e o fora, a casa e a rua, o interior e o exterior.

João começou a pensar no jardim e lentamente começou a formar-se uma imagem na sua cabeça, começou a compreender o que Ellie tinha querido dizer quando falou das pessoas precisarem de sujar o jardim para se sentirem bem. O jardim era como o sol, algo de mágico e grandioso. No seu interior habitavam miríades de pequenos bichos, ecossistemas dentro de ecossistemas, a vida e a morte e todos os seus ciclos se podiam encontrar ali, encimados por aquelas belas árvores, uma harmonia que escapava completamente ao nosso entendimento, que ultrapassava os estreitos limites da vida do dia-a-dia. Que nos fazia a todos parecer ridículos, com os nossos sonhos de glória, as nossas grandes preocupações e grandes objectivos. Aquele jardim era como um grande amor, obrigava a que tudo desaparecesse que fosse vão. A vida de qualquer um que o admirasse profundamente teria de mudar, teria de se limpar... teria de se tornar tão pura como ele.

Agora lembrava-se perfeitamente dos primeiros dias em que conhecera Ellie, e compreendia que também ela fora nessa altura uma espécie de jardim mágico para ele, fazendo-o deitar fora tudo aquilo que não tinha interesse, provocando uma verdadeira renovação em toda a vida dele, desde as bases ao cume. Mas com o passar do tempo tinha tido necessidade de a possuir. Tinha de pôr uma máscara sobre ela, porque não a conseguia ver em todo o seu esplendor. Se a visse, então muitos dos seus objectivos teriam de ser redefinidos, muitas das coisas que achava valiosas teriam de sair... Era ela ou o seu mundo de toutes petites choses... E foram as pequenas coisas que venceram....

Compreendia agora porque ela não queria que ele a abraçasse daquela maneira... Aquele abraço era uma prisão, era como a lingerie que ele lhe sugeria que usasse, como falar-lhe do peso, e da moda. Eram trends que ela seguia para se manter juntinha a ele, juntinha sim, mas amestrada. E a beleza divina que a alimentara um dia perdera-se completamente aos seus olhos. Ela tornara-se uma coisa. Ele sentiu-lhe a mão, e percebeu que ela era o seu próprio coração, e que ao falar dela, estava a falar de si próprio.

Estenderam-se lentamente, preguiçosamente, prazeirosamente, à luz daquele sol, de mãos dadas, e naquele diz não aconteceu mais nada.

Mas ficou a promessa de um novo encontro, de um novo “dar as mãos”, quem sabe mais tarde.

João visitou muitas vezes o jardim, e agora o seu corpo transbordava de luz! Estaria pronto quando ela voltasse.