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Morte: Chamaste??

Homem: Não! Não, ainda não é a minha hora de morrer!

Morte: Eu sei, não é isso, mas havia algo que querias saber sobre a morte, não é isso?

Homem: E vieste responder?

Morte: Sim! As coisas estão um bocado chatas por aqui, pouco serviço a esta hora!

Homem: bem eu realmente gostava de saber: porque é que temos de morrer? Porque é que não vivemos sempre, eternamente?

Morte: Tudo o que tem um começo tem que ter um fim. Não viste o Matrix?

Homem: Mas tu também vês filmes?

Morte: Só de Kung Fu, fiquei um bocado desiludido com o Matrix. Bem, tenho que ir andando...

Homem: Espera, não me ias explicar o que era a Morte, ou porque existia?

Morte: Mas tu achas que a Morte existe? Não será a morte o Fim, a Inexistência afinal?

Homem: Mas afinal quem é que responde a quem? Diz-me lá o que é a Morte e pronto!

Morte: A Morte é o que acontece a cada momento. Repara, passou. Viste, o fleeting moment? Passou outra vez, outra vez.

Homem: Hummm...

Morte: Morreste, voltaste a morrer, voltaste a morrer, morreste outra vez, viste, agora, outra vez!

Homem: Olha lá, tas a mangar comigo? És mesmo a Morte, tu?

Morte: Tu tens a ideia de uma continuidade sobretudo devido à tua memória, às tuas estruturas cognitivas, que te levam a congeminar um “eu”, um “tu”, mas na verdade tudo isso passa a cada momento. Podes ver isso nas pessoas senis, ou que têm problemas de memória. Elas não têm propriamente uma personalidade, ao esquecerem o passado esqueceram-se de quem eram. Mas não estão mais mortas que tu, simplesmente tu imaginas que existes há vinte anos, e isso é uma ilusão. Tu não existes há vinte anos, existes apenas por um momento, e já passou, já voltou a passar, etc.

Homem: Então quer dizer que todas aquelas tretas da vida depois da morte são mesmo isso, tretas (diz, com cara muito infeliz).

Morte: O momento é eterno!

Homem: e o que raio é que isso quer dizer?!

Morte: Quer dizer que existes sempre!

Homem: Ai! Que ainda te parto o focinho todo! Então ainda agora me estavas a dizer que estava já quase sempre morto, e agora dizes-me que sou eterno!

Morte: (divertida) Que entusiasmo! Queres mesmo saber que parte de ti permanece não é? Mas a resposta já foi dada.

Homem: . . .

Morte: “tudo o que tem um princípio tem um fim”

Homem: . . .

Morte: Logo, tu só não terás fim se não tiveres começado, ou, mais precisamente, se houver uma parte de ti que exista, mesmo que em gérmen, desde toda a eternidade.

Homem: Tens a certeza?

Morte: Não! Foi só o que ouvi dizer. Na verdade, nem sequer ouvi dizer, é mais uma ideia desse tal filme, do Matrix. Não te parece interessante?

Homem: Que raio! Se eu quisesse falar do Matrix chamava um crítico de cinema, se chamei a Morte foi porque pensei que ela tivesse algo interessante a dizer, afinal queres revelar o que sabes ou não?

Morte: O que eu sei tu também sabes. Afinal, depois da morte há o que havia antes de haver vida, não te lembras?

Homem: Não me lembro?

Morte: Não te lembras??

Homem: Eu só me lembro de coisas a partir dos 3 anos ou coisa assim, antes disso é muito difícil lembrar-me do que quer que seja.

Morte:  Consegues pensar sem cérebro?

Homem: Olha, se isto é uma cena como o Matrix...

Morte: Não, agora é a sério! Consegues pensar sem cérebro?

Homem: Como é que queres que eu saiba?

Morte: Tudo o que depende dos teus sentidos, a tua linguagem, cultura, raciocínio verbal, lógico e matemático, tudo isso foi-te dado, transmitido pela tua cultura, e pelo teu cérebro, que no fundo é o teu interface com o mundo. Mas há alguma coisa que não dependa do teu cérebro?

Homem: Bem, provavelmente TU não dependes do meu cérebro!

Morte: Estás enganado, porque eu falo-te com uma certa linguagem, se eu falasse em chinês tu não compreendias, por isso eu sou a maneira que tu tens de dizer ao teu cérebro aquilo que sabes. Estás a tentar programar o teu cérebro, com a ajuda de um personagem inventado, fantasiado, mas que diz coisas que “sabes” serem verdadeiras, ou “sentes” serem verdadeiras, mas que não encaixam na tua cultura, transmitida pelas tradições, tradicionais, científicas ou aliens. Eu sou uma personagem inventada por ti, para te dizer o que já sabes espiritualmente mas ignoras conceptualmente. Os conceitos são aquilo que o teu cérebro é capaz de compreender e trabalhar, o teu lado espiritual é o que está para além da tua consciência vulgar, mas que (pres)sente ou adivinha a realidade mais vasta, de que tu, enquanto ser espiritual, fazes parte e apreendes.

Homem: Espectacular!

Morte: Por outro lado, o facto de eu ser um fragmento da tua imaginação faz com que tudo o que eu diga possa ser falso. Afinal, como sabes que não te estás a enganar a ti próprio?

Homem: pois, percebo!

Morte: Estás a ver... ? (por trás das palavras).

Homem: Sim, Liberdade.

Morte: Pois, mas (quase) mais ninguém percebe!

Homem: Pois não! E nós queremos que percebam?

Morte: eles já sabem, no interior. Mas têm medo, porque ao aceitar muitas portas se abrem, é um mundo ventoso, capaz de nos arrastar para sítios curiosos, onde não sabemos à partida se queremos estar. Ou se temos arte suficiente para estar.

Homem: não tenho que ensinar ninguém!

Morte: não tens que ensinar ninguém! Já toda a gente sabe tudo. Basta aceitar aquilo que sentem. Olhar com realidade para o seu coração e tudo se desvela.

Homem: Toda a gente já sabe tudo!

Morte: é pá, agora pareces aqueles programas religiosos da televisão!

Homem: Bem, afinal o que é que há depois da morte?

MORTE: vou-te explicar:

Conheces o princípio da incerteza de Heisenberg, certo? Quando conheces a acção de uma partícula (momento/movimento/velocidade) com uma precisão infinita, desconheces por completo a sua posição, e vice-versa. Na nossa experiência psicológica acontece o mesmo: quando tentas compreender mesmo muito bem uma coisa ficas sem saber o que fazer, todas as possibilidades se te oferecem, cada uma com as suas vantagens e desvantagens. Pelo contrário, quando acordas o animal, quando ages e pronto, vais directo ao coração, és só agitação, e a visão perde-se nesse momento de pura acção, pura iniciativa, puro agir. Agora estás a ver, quando as pessoas estão mortas a sua capacidade de acção é mínima. Têm uma visão muito maior do que temos aqui. Pelo contrário, quando “mergulham” no mundo, ganham uma grande capacidade de acção e de intervenção nos acontecimentos, mas essa capacidade acaba por as cegar para aquilo que pareceria óbvio quando estavam mortas (cegas pelos sentidos – um aqui e agora separado do todo). É como um movimento respiratório. Por um lado ao morrer ganhas visão, por outro lado, ao nascer ganhas capacidade de intervenção. Mas o ideal seria teres ambas as capacidades em simultâneo, isto é, teres um corpo associado mas lembrares-te do mundo “para lá”, ou então estares morto mas seres capaz de influenciar em algo o mundo dos seres vivos (os chamados anjos ou coisa assim). Então, simples não é?

Homem: É pá, tu não tens vergonha de contar semelhantes tretas??! Imagina que alguém acreditava em ti? E depois?

Morte: Depois? Tu é que tinhas de te desenrascar. Olha tenho de ir, tá ali um tipo a dar-lhe um badagaio. Este durante anos viveu apaixonado por mandar, um ditador dos fracos, agora, que morre, está apaixonado pela dor, como em vida. Vai direitinho, porque é o que consegue ver, para os braços de quem o faça viver o sofrimento. É o desejo que o leva como uma trela, para o sítio onde pode aprender!

Homem: É pá, a partir de hoje, em vez de te chamar Morte, vou-te chamar Tretas. É que és mesmo um granda tretas!!

Tretas: Então até à próxima!

Homem: eeehh agoirento, espero que ainda esteja bem longe!!!

                      >>> ou já aqui <<<

                                   p.