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A Viagem


I

Eram 7:15 da manhã quando o alarme tocou. Para algumas pessoas (raras) esta é uma ocasião de festa e alegria, o surgimento de um novo dia, cheio de coisas novas, de momentos novos, oportunidades para fazer. Mas para Delfos, o nosso herói, tal como para a maioria das pessoas da nossa terra, acordar era um momento insólito, a terrível despedida do mundo dos sonhos e do prazer dos lençóis.

Ao princípio, quando era miúdo, Delfos despertava alegre, aos fins-de-semana. Eram dias de começos maravilhosos esses. Em vez de rabujar por ir para a escola e tentar manter-se na cama o mais tempo possível, Delfos acordava cedo. Pulava literalmente da cama e admirava-se com todas as horas daquele dia. Horas e horas para fazer o que ele quisesse, tudo o que ele quisesse. Podia saltar para a frente da televisão e ficar ali especado a acompanhar as aventuras e os risos mais rocambolescos, podia ir comer tarte de maçã à cozinha (ainda mais ninguém se tinha levantado), ou ficar horas e horas a jogar computador, todos os jogos que tinha, em qualquer ordem, em qualquer momento. Era simplesmente fantástico!

Nos outros dias havia os miúdos que ele não queria, as lições que não tinha pedido, os momentos frios da escola, que começava em Outubro, mês da chuva. A despedida sistemática mas sistematicamente dolorosa dos pais para ir para um mundo de desconhecidos, alguns dos quais com quem se dava bem.

Os dias de escola passaram a ser alegres quando passaram a ser desejáveis, mas nunca o momento de acordar, que era visto como um suplício, uma imposição, um horário.

Há quem goste de horários. Mantêm-nos na linha, dizem alguns. Para Delfos isto era incompreensível. Ele detestava horários, nada melhor para ele do que fazer tudo o que quisesse quando quisesse e na altura em que quisesse. Talvez ele nunca tivesse formado o carácter!

Por essas ou por outras, Delfos não sabia, o que é certo é que agora nem aos fins-de-semana gostava de acordar. Tinha-se tornado como os seus pais, pensara um dia. Agora ficava a manhã toda deitado, a ruminar nos lençóis, supostamente a descansar de todos aqueles dias fatigantes de trabalho, mas, na verdade, a tentar escapar de mais um dia de fim-de-semana. Não que não fosse bonita a ideia de ter dois dias para descansar. O Sábado e o Domingo apresentavam-se como óptimas invenções de Deus. Podíamos fazer tudo o que quiséssemos nestes dias. O problema, sentia Delfos de uma forma confusa, é que estava só. Ou talvez fosse melhor, mais agradável, dizer que estava demasiado acompanhado. Sempre pelas mesmas pessoas, sempre pelos mesmos problemas. Um problema que ele não quis, que não previu, que não desejou.

Agora os fins-de-semana eram rodeados pela nudez das paredes, ornamentadas de objectos de desejo para a vista. Prisões para a mente, para o espírito e para o olhar. Nesses momentos Delfos só queria viajar. Passar para lá daquele espaço e daquele tempo que o aprisionava. Sonhava com barcos de piratas e muitas aventuras, sonhava com os seus tempos de criança, onde tudo era possível. Tudo e tão pouco. Delfos, quando era pequeno, não tinha carro nem carta. Agora tinha tantas coisas e não podia fazer nada. Tinha tão pouco tempo. Olhou para a sua bela carrinha lá fora, quase um jipe!! Era motivo de admiração de todos os seus amigos. Mas agora era preciso pagar a prestação, não podia sair do trabalho, limpá-la e lavá-la todos os Sábados de manhã. E depois as revisões e o óleo e o desejo de um novo carro para mudar. Sempre mais e mais e mais prisões. Era como o candeeiro da sala ou o aquecedor do salão, faziam a casa tão confortavelmente aconchegante que nunca apetecia sair. Comprava-se o carro e nunca mais se andava a pé, de bicicleta ou se escalava montanhas. Aquilo tinha sido tão caro que agora tinha de valer o dinheiro.

Delfos dava-se muito bem com a sua mulher, Ana e com a filha de ambos, Catarina. Vivia com elas um sonho de infinito amor. Todos os dias eram de paz, envolvidos em torradas quentes com manteiga de manhã e trabalhos da escola para fazerem a três à noite. Era muito giro, mas, quando olhava para a janela e via os campos que conduziam à montanha lá fora, Delfos só queria partir. Alimentava-o o estranho sonho de que, para lá daquele vidro onde reinava o conforto dormente da casa, houvesse alguém que pudesse fazer uma viagem com ele. Não uma viagem qualquer, não uma viagem de comboio, em sete estrelas, não... uma aventura, uma verdadeira Aventura, arriscando tudo, perdendo tudo, para conquistar tudo, para salvar alguém. Delfos, já nessa altura, queria ser um herói e sonhava com alguém que quisesse partilhar o seu sonho.

Parecia-lhe que a sua vida era vivida agora a preto e branco e que na verdade não vivia. Apenas vegetava, entre os anúncios do televisor a cores. E quem vivia, quem vivia verdadeiramente? Haveria algum viajante intrépido, guiado pelos sonhos da Aurora, neste mundo agora tão despido de ideais, onde se faz tudo por uma promoção no trabalho, por mais dez pontos, por um litro de gasolina para o motor, por um sorriso que nos salve da morte? O que tinha esta vida de tão agasalhador, de tão atraente, para a preferirmos ao sabor da viagem, ao sabor do vento frio vindo do Norte que acompanha todos os velejadores?

Havia alturas em que o sentimento era tão intenso que lhe apetecia partir a janela e acabr com tudo. Fingir que morrera, simular a própria morte, e ir viver uma nova vida, ausente de todos os que conhecera, uma nova vida de verdadeira liberdade, sem rumo ou destino traçado, mas cheia de aventuras e em direcção (porque não podia deixar de ser) a algo maravilhoso; em direcção a si próprio; a tudo aquilo que queria ser.

Havia discos e livros e filmes que falavam disso. O prazer da viagem, o perigo do Mar, a ânsia de chegar.

Delfos era português, e como português lera a Mensagem de F. Pessoa. E ela diz assim:


Delfos leu a mensagem e, de um modo incompreensível, talvez algo louco, achou que era uma mensagem para ele e para todos os portugueses, não só os da altura dos descobrimentos, mas para todos os que existiram antes e depois deles, nascidos em Portugal ou em qualquer outro mundo. Os portugueses eram aqueles que atravessavam o mar e que descobriam todos os 5 continentes, e para quem o mundo se tornava um mundo azul, livre, nas mãos de uma criança. Um playground, como diriam os ingleses. Mas não limitado aos jogos de computador, à televisão, aos jogos de cartas com amigos... Um terreno de brincadeira constante, livre e sem limites.

Sentia-se só...

Mas se ele era louco, o certo é que não estava só. Porque havia mil discos e filmes e livros que falavam da mesma loucura. Um dos primeiros que viu foi "The Truman Show", um filme sobre um homem controlado que se descobre controlado à medida que se quer libertar, pelo amor de uma mulher. Sobre a paixão sabia Delfos muito, porque tinha havido Aquela, A Princesa dos Olhos de Ouro, que lhe tinha ensinado tudo sobre amores, ou melhor, sobre amores impossíveis. Sabia bem de que falava ... na música ... quando diziam

"no fundo dos olhos de uma mulher encontrei ..."

E tinha encontrado muitos casos, na vida real e na música, de amores como esse. Pessoas que viviam à espera de ver o outro chegar, que contavam cada dia por ver a luz daqueles olhos. Não, não era só para o Manuel Alegre que todas as horas e momentos eram antecipações daquele encontro, havia a Teresa e a Romana, o Paulo e o Pedro, a Sara e o João. Para todos eles fazia sentido aquela música do Pedro Ayres, cantada no feminino e no masculino "Cada momento é pior, volta no vento por favor." Mas que tinha isso de original, quando já a Amália, com a voz de tantos poetas, cantava o amor que nunca voltou, mas sempre vivido, no presente, em cada momento.

O mesmo não se passava com Delfos, ainda não, pelo contrário, o olhar de Delphine via-se à distância, permanecia como um marco de um mar longínquo, sem que ele tivesse sequer um barco para o atravessar.

E porque quereria incentivar esse amor, se estava tão bem como estava. Ou estava? Afinal sentia-se só, como podia ser isso, se amava e era amado tão bem e tão intensamente, pela dupla de mulheres e filhas que tanto amava e de quem não se poderia nunca desligar...

Sentia-se só...

Depois viu o Matrix, aquele filme sobre o faz de conta, uma sociedade que nos persegue e nos quer usar. Ele sentia, ele sentia a perseguição, todos os dias a energia sugada para o trabalho, para as trivialidades do dia-a-dia. Ele queria lutar, mas como, como? No filme, Neo só se salva com a ajuda de Trinity, de quem gostava. É o amor que permite a saída, não ser utilizado pelo 'construct', mas utilizá-lo a seu belo prazer.

Delfos, como Neo, compreendia muito bem, teoricamente, o que aquilo queria dizer, mas na prática era mais difícil. Mas todas aquelas ideias o prendiam, agora já não gostava do trabalho, nem da casa, nem do carro, e todos os seus amigos lhe pareciam falsos, e todas as coisas que tinham lhe pareciam correntes... Agora estava, sentia-se, verdadeiramente só...

II

O porto dava para o Tejo que dava para o Mar. Via a água sempre diferente a mudar de cor e forma a cada instante e perguntava-se como os peixes poderiam morar ali. Reconhecia no rio a metáfora de rituais antigos. O homem descontente com a cidade, vai para o Porto e lança-se ao Mar, à procura de uma ilha prometida, que todos dizem não existir. Os homens da cidade consideram-no louco (pois só assim poderiam continuar a sua triste existência) e ele vai mesmo assim, sem se poder apoiar em nada, sem poder acreditar em nada, mas guiando-se somente pelo seu desejo, e pela sua crença, ou esperança, de alcançar, essa terra prometida.

Estava no porto, e queria-se lançar.

Aconteceu tudo muito rapidamente, um dia saiu e não voltou. Saiu para ir buscar um maço de cigarros, nunca mais voltaria aquela casa, 'agora era impossível voltar, pensou, mesmo que quisesse... impossível.'

Ir para onde, fazer o quê? Pensou em várias coisas, agora que estava livre... Estar livre... é uma ideia radical, inebriante, esfuziante de novos ideais, de novas coisas para fazer. Poder ir para qualquer país, fazer qualquer coisa... O que quereria ele fazer... atravessar o deserto, converter-se a uma nova religião, aprender uma nova língua? No fundo nada disso e isso tudo, queria encontrar de novo Delphine.

Em termos práticos as coisas não poderiam ser mais fáceis. Tinha dinheiro poupado que podia usar, tinha o antigo contacto dela, que ainda funcionava. Nada poderia ser melhor.

Antigos pensamentos ainda povoavam a sua mente, acerca das pessoas que tinha que deixar para trás. Pensava sobretudo em Ana e Catarina, os seus dois, o seu único amor. A mãe e a família não os deixava porque nunca os tinha tido. E, porque se os tivesse, transportá-los-ia sempre consigo, neste barco que iria agora forjar. Ele era tão pequeno que dava apenas para o seu próprio corpo, e para as memórias que não tivessem peso.

Alugou um quarto, na parte velha da cidade. Na verdade era um sótão, de onde se via Lisboa, onde podia estar em contacto com Lisboa. Agora que se libertava de todas as suas antigas tarefas e obrigações tinha mais tempo para encontrar novos amigos, que pensassem mais como ele, ou talvez não, e tinha tempo, finalmente para prosseguir aquilo que verdadeiramente queria. O dia clareou, e ele também ficou claro, em todos os seus pensamentos. Agora levantava-se com a Aurora, e cada momento era de felicidade, como um eterno fim-de-semana de uma criança. Eram os primeiros dias, o começo da viagem, depois de sair do Porto de Abrigo.

Em relação a Ana e a Catarina, tinha vindo a desenvolver uma teoria nos últimos anos. A sua prisão era também a prisão delas. Viviam naquele mundo, naquela sociedade, também elas sozinhas, sem saberem o que iriam fazer. Tinha dado 'à luz' uma filha, só para a vender a seguir aos ditames, aos aguilhões, da sociedade. Não. Era preciso mudar tudo, libertar Ana, para que ela libertasse a Catarina que havia dentro daquela casa. Depois tudo seria melhor, tudo seria diferente. Se elas vissem as coisas como realmente eram, então talvez nem nos tivéssemos casado em primeiro lugar. Porque há as leis dos homens e as leis feitas pelos homens. Todos temos de nos casar e ser muito simpáticos e ter filhos que se casem e sejam muito simpáticos, e depois morremos sem sequer termos começado a viver. Não era isso que Delfos queria para nenhuma das suas meninas. Ele queria que elas fossem felizes, intensamente, arduamente. Que descobrissem o mesmo prazer de viajar à luz do Sol, contornando o vento de modo a chegar a um destino feliz, à terra prometida que tinha de existir (senão porque falaria tanta gente dela?).

Na terra prometida não havia dissensões e tudo corria pelo melhor. Ana e Catarina seriam de novo suas amigas (talvez, se o quisessem ser), e ele seria ele próprio, quem teria sido sempre, antes de se perder pelos recantos constrangedores da cidade. Ver-se-ia a uma nova luz, agora já sem máscaras, faria tudo o que quisesse, seria tudo o que quisesse.

III

O Mar e as criaturas do mar são elementos estranhos ao homem. A dificuldade principal é que o homem fica sempre à superfície, ou, se desce, é com a ajuda de complicados engenhos e motores. Talvez um dia se inventem umas guelras artificiais que, postas directamente sobre os pulmões, ajudem o homem a mergulhar verdadeiramente nessa atmosfera marítima. Por enquanto só pode mergulhar e suster a respiração, vindo depois à tona completamente esgotado. Seja como for, para um homem sem guelras, viajar só pode ser à tona d'água. Tudo o que está por baixo permanece um mistério, imprevisível. As correntes marítimas só são visíveis pelos seus efeitos e os ventos têm razões que ninguém conhece na totalidade. O homem no mar, um homem no mar, é como um peixe fora de água. Viajando numa pequena superfície, numa segurança restrita, deixado ao sabor dos ventos e das marés, luta arduamente para manter o seu rumo em direcção, normalmente, a uma terra que não consegue vislumbrar com o olhar, e o seu único ponto fixo de referência, que não muda para quem sabe olhar, é o céu, visto por entre o olho perscrutante de um astrolábio.

Mas é claro que Delfos não conhecia os segredos dos navegadores experientes. Se o soubesse orientar-se-ia tão bem ou melhor nos céus do que em terra e só restaria para vencer a força incontrolável do mar. Mas Delfos era um navegador inexperiente, nem saberia que olhando para o céu poderia encontrar pontos de referência, e, se tinha ouvido falar de um astrolábio nos seus livros de escola, tinha sido mais como uma lenda, nunca conseguiria reconhecer um ao vivo e muito menos usá-lo. Até para se ser navegador solitário precisamos de amigos...

Do quarto sobre a cidade a sua vida tomava uma nova dimensão. Pensava em tudo o que tinha feito, reinterpretava tudo, encontrava sentidos escondidos, significados perdidos, vinham-lhe à memória acontecimentos até aí perdidos da infância e em tudo encontrava o mesmo olhar, a mesma face, Delphine estava em todos os acontecimentos da sua vida. Já antes de a conhecer a desejava, sem saber que era ela (ou sequer uma rapariga) que desejava. Naqueles momentos de uma ansiedade nostálgica por um sentido perdido, um sentido qualquer para a vida, tão longe do sol, tão fria, tão desinteressante de viver. O que lhe poderia curar essa ferida? Um mandamento de Deus, uma religião qualquer? Como ele desejava poder ter acreditado, conseguir acreditar, numa religião qualquer, qualquer religião servia, desde que lhe fosse para dar esperança, para lhe dizer, as coisas são assim, o bem é isto e o mal é aquilo. Deves fazer isto e evitar aquilo e lutar contra aqueloutro. E pronto, tudo seria fácil. Mas se os budistas (e havia muitos) diziam que era impessoal e se os cristãos conseguiam falar com ele directamente, então algo estava errado. Ou uns eram pitosgas ou os outros andavam a embriagar-se com a sua própria imaginação. Os dois ao mesmo tempo é que não podia ser. Mas depois havia todos os crimes perpetrados em nome de um Ser, de um Destino Maior. Todos os mártires, as bruxas queimadas, outros devorados no Circo Romano, a guerra dos Templários. Tanta violência em nome do amor, mas na verdade disfarçada como sede de vingança e de poder. Tantos destinados pela visão decrépita de velhos monásticos na cadeira do poder.

É que, e agora via-se bem, a única mensagem, a única verdade, o único bem, era o amor. Ama o teu próximo. Eis o único mandamento. Ignora o teu próximo, eis o único pecado. E ignoramos as pessoas sempre que lhes pomos à frente velhas teorias, sejam elas novas ou revolucionárias para nós, as teorias são sempre velhas, porque são comuns. Podem ter sido pensadas, defendidas, por milhares de pessoas antes de nós, ou por milhares de pessoas depois de nós. Qualquer ideia, por mais abstrusa ou revolucionária que possa parecer aos nossos olhos, pode sempre ser a base de qualquer sociedade, pode sempre ser a prisão sobre a qual milhares de vidas são acorrentadas. Mesmo a sede da viagem, pensava tristemente Delfos, pode orientar a vida de uma comunidade. A diferença é que o mar nos isola, leva-nos a pensar por nós próprios. Agora estou aqui sozinho, pensava Delfos, à luz desta janela que ilumina Lisboa, e posso pensar o que quiser. Ninguém me impõe normas ou regras, ninguém me diz ou ensina o que devo fazer. Numa sociedade fundada na viagem, todos passariam a ser livres e chegariam às conclusões por si próprios, ou pelo menos seriam incentivados a isso. E todas as verdades seriam íntimas, reveladoras, mas intransmissíveis.

Mas se este ideal chega para uma sociedade não chega para uma pessoa. Porque ninguém vive eternamente no mar, ou para o mar. A dúvida, a viagem, é apenas um meio de chegar a outro lado. Qual seria a verdade de Del, qual seria o seu verdadeiro objectivo, porque lutava ele, que destino queria atingir. A sua verdade é talvez melhor expressa afirmando que não existe qualquer verdade. Pelo menos não uma verdade que se sobreponha ao sofrimento, à tristeza, à alegria de alguém. Não há apenas uma verdade, uma maneira de ver a vida diria Delfos, mas muitas, todas elas igualmente verdadeiras, válidas, prementes. Deve ser o sentimento dos outros, a ajuda aos outros, a determinar que verdade se escolhe. Se houvesse um só princípio deveria ser o seguinte: nunca pôr uma ideia à frente de uma pessoa. As pessoas valem sempre mais do que qualquer ideia, e mesmo esta ideia se deve subjugar a isso. Porque quando as pessoas precisam de uma terra definida, devem poder tê-la, se isso for essencial.

Era com estes pensamentos que Delfos se entretia, como se fosse uma criança, brincando com as ideias e palavras, vivendo no seu mundo ideal, longe de tudo o que não gostava, mas preparando-se, lentamente, para a tempestade.

IV

Delphine não estava no horizonte, mas em breve passaria a estar. Foram anos e anos de espera à procura do seu olhar. Ansiando, sequiosamente, pela pele, pelo cheiro, um sorriso, daquela boca tão terna, daquele país tão sadio, onde tudo e mais alguma coisa parecia possível. No fundo daquele olhar, aí no fundo daquele olhar... como dizê-lo... que passei à eternidade...

A sede durante tanto tempo mantida desabrochava agora em mil imagens selvagens, em mil conceitos de flores, em mil ilusões e paisagens, paisagens adornadas, adoradas, pela cara dela, por aquele olhar.

É difícil explicar o que atraía tanto Sebastião (o nosso herói chamava-se Sebastião Delfos, mas toda a gente o tratava por Del) naquele olhar. Mas podemos dizer que nele toda a sua vida se reencontrava com uma nova coerência, a uma nova luz. Foi como se sempre tivesse tido um desejo escondido dentro de si, e esse desejo agora se revelasse em toda a sua cor e magia. Era todo ele, Sebastião Delfos, que acorria, que escorria, que se derretia, e contorcia para alcançar o que sempre tinha querido sem saber, o que sempre tinha desejado nas profundezas do seu sonho. Ser inteiramente livre era afinal ser inteiramente ele próprio, reconciliar-se com o seu passado e ver tudo a uma nova luz que dava coerência a tudo o que tinha acontecido, a todos os seus desejos e paixões.

Se Sebastião tivesse sabido nunca se teria aproximado daquela ilha que antevia ao fundo e que estava tão bem guardada. Em vez disso ter-se-ia enfeitado de crinas e flores, e erguido no mastro alto um signo bonito. Depois cantaria às estrelas, às sereias e ao mar, e alcançaria fama com os seus cantos. Seria a ilha a ir ter com ele, a abrir-lhe as portas e a convidá-lo para entrar. Seria as gentes da ilha, apaixonadas pelo seu semblante, desejosas de lhe agradar, a ensinar-lhe os pontos perigosos da entrada, os baixios pontiagudos, as correntes escondidas, e a entrada verdadeira no meio de um labirinto de entradas falsas, de visões perigosas, de desejos falsos. O truque, perceberia mais tarde, era não tentar entrar. Pelo contrário. Teria que merecer a sua entrada de outra maneira qualquer porque não se pode lutar contra todo um povo (mesmo que pareça só o povo de uma ilha, mesmo de uma ilha pequena). As ilhas podem defender-se de maneiras que são impossíveis de imaginar para um continental. As passagens são difíceis e os ventos são perigosos, e as vagas. E se o portão se fechar não há qualquer maneira de entrar. Mas Delfos, que não era conhecido por Delfos no Reino da ilha, nem por Sebastião, mas não tinha sequer nome, a não ser a de um viajante solitário, lançado ao mar, sem passado e sem destino, lançou-se mesmo assim junto aos seus portões. Não poderia esperar nada a não ser ser recebido como um forasteiro, mas o desejo quebrou-lhe a visão.

Foi num belo dia de Outubro que começou a Odisseia junto daquela menina, daquela cidade, daquela Princesa sem Reino, daquele Reino despovoado ainda a não ser por fantasmas.

V

Delphine.