Há medida que nos aproximamos da “cidade santa” vamo-nos começando a aperceber de um tema que se tornará cada vez mais explícito na série: os “maus” e os “bons” são no fundo a mesma coisa: uma oportunidade para aprender. Isso culminará com a descoberta de Sangoku de que Deus e Satã são exactamente o mesmo (duas partes da mesma pessoa). No fundo servem para o fazer evoluir, um dando-lhe meios, o outro mostrando-lhe o que ainda lhe falta aprender (onde ele falha).

 

Neste caso é Topaipai que faz a introdução da cidade santa. Topaipai é muito diferente do General Blue . Enquanto o General Blue se alimentava sobretudo das emoções:

 

(ep 57 – as relações e aspirações sociais do general blue no país das fadas)

 

ou seja, enquanto que o General Blue tinha como objectivo manipular, ser mais forte, aprisionar, sobrepor-se aos outros, etc, e por isso estava numa organização, Topaipai age por conta própria. Ele simplesmente despreza a fraqueza. Mas ao mesmo tempo é compassivo. Essa é na verdade a sua grande força. Aparentemente parece (e é descrito) como um assassino sem sentimentos, que mata a sangue frio. Mas essa descrição deixa-nos vulneráveis. É essa a descrição que Sangoku vai ver no primeiro ataque que faz a Topaipai, depois de ele ter morto o guardião da torre, de quem Sangoku se tinha tornado amigo. É nesse ataque de fúria e contra esse cold blooded assassino que Sangoku vai lutar, e perde…

 

 

E Topaipai não ganha pela acção, mas pela passividade. Ele compreende Sangoku, a sua força, o seu destino. Mas pura e simplesmente não está para se preocupar, o seu mundo é absurdo, a vida é uma sucessão de momentos sem sentido. O amor que ele possa ter pelos outros é varrido pela sequência de momentos absurdos do mundo. Pagaram-lhe e é tudo. Ele não recebe ordens de ninguém. Age por si próprio. É indiferente, compassivo, apaixonado, gosta do miúdo (Sangoku), mas não vai alterar uma vírgula por ele, vida e morte são indiferentes, ele é apenas uma formiga no caminho da sua vontade; apesar da sua intimidade, da sua compreensão profunda de Sangoku, apesar ou talvez devido à sua solidão, a sua capacidade de se ter desprendido do mundo, das regras sociais, do amor, etc. A sua vida é vazia. Aprendeu tudo, sabe tudo, é o mais forte, compreende o amor, mas não o segue. Não lhe vê a cor. É capaz de sentir simpatia por Sangoku, ele conhece os recantos da Torre Sagrada, mesmo sem nunca lá ter ido, e no entanto, não se envolveu com ela; há um amor presente, uma plenitude; mas uma plenitude do absurdo (como em Sartre), um amor solitário, perfeitamente só. E daí:

 

que Topaipai tenha de vencer

 

 

Mais tarde Sangoku subirá à torre, e compreenderá algo que agora não é ainda dito, mas que se depreende, não tanto do que se passa na torre, entre Sangoku e o mestre dos mestres, mas, mais tarde, na luta em que Sangoku derrota finalmente Topaipai .

 

Essa luta é de longe a mais interessante e é ela que vou analisar agora. A primeira vez que Sangoku dfronta Topaipai é movido pelo ódio, pelo sentimento de revolta e de vingança. Contra os membros do exército da legião vermelha isto por certo que funcionaria (até em relação ao seu chefe) porque se trata de um sentimento autêntico, contra pessoas que vivem disfarçadas, a lutar por coisas para conseguir outras (poder para conseguir beleza, manipulação para conseguir amor, etc). Estas pessoas são intrinsecamentes mais frágeis, pois vivem divididas entre o consciente e o inconsciente. Enquanto que uma parte delas vive e quer conscientemente certas coisas, é o inconsciente verdadeiramente que domina, que lhes diz para onde devem ir, para onde devem seguir, o que devem querer, etc. São como sonâmbulos que pensam que sabem o que querem (ou nem pensam nisso) mas na realidade os fios que comandam a sua vida e os seus destinos estão presos por mãos que eles não imaginem e de que nem suspeitam nos seus sonhos. Vivem como que controlados por um sonho mágico, cujo destino final, embora infinitamente belo, eles não podem ainda imaginar. A revolta é já, no caso de Sangoku, um sentimento mais real, mais acordado. Ele é fundado não nos conceitos de magia, de sonho, que alimenta a vida dupla dos sonâmbulos (que inventam teorias e explicações que só servem para esconder que não sabem a verdade), mas numa revolta real.

 

No entanto, no caso de Topaipai, essa revolta é inútil. Porque Topaipai não vive à espera de encontrar o amor, o reconhecimento, não tenta manipular nem a ele nem aos outros. Ele vive só, e sem esperança de encontrar nas relações humanas a cura para o seu isolamento. Ele já percebeu o absurdo, o sem sentido da vida. Nada o poderá curar disso. Os seus assassínios não são motivados pelo ódio, nem pela tentativa de seduzir os outros ou a si próprio com o seu poder, são apenas um exercício de auto-expressão num mundo que ele vê como absurdo. De certa forma, a morte pode ser vista nesse caso quase como um alívio. Daí que a expressão de Topaipai quando defronta pela primeira vez Sangoku seja de uma certa paz e tranquilidade. Ele é o único a conseguir ligar o assassínio a uma grande paz de espírito.

 

Como é que Sangoku o vai conseguir derrotar? Bem, vimos que Sangoku sobe à Torre Sagrada e aí aprende que, mais importante do que ser rápido, ou forte, é seguir os movimentos, os pensamentos, do Mestre dos Mestres. Isso incluí ser honesto e respeitoso mesmo em situações muito difíceis (como aquela em que o gato deita fora a bola de cristal e Sangoku perde um dia inteiro só para descer da torre e voltar a subir para a ir buscar!! Quando volta o gato está a dormir, poderia tentar tirar-lhe a água sagrada nessa altura, mas nem aí, quando o desprezo deveria ser maior, Sangoku esquece a lição do respeito). No entanto não nos é dito exactamente o que é que Sangoku aprende. Limitamo-nos a vê-lo seguir os gestos, mesmo os mais íntimos e triviais do mestre. Mais tarde apanha a água sagrada e volta.

 

Quando volta ao local de combate é que os ensinamentos do gato se tornam mais explícitos. Em primeiro lugar Sangoku já não está preocupado em vencer. Topaipai diz-lhe várias vezes que vai vencer, ao que Sangoku replica que “vamos ver isso” ou “já estás a dizer isso há muito tempo” ou “quando vais começar?”. Mesmo nessa alutra observamos que os golpes de Sangoku por vezes também dão mau resultado. Mas quando Topaipai decidi ir à Torre Mágica Sangoku não tenta pará-lo. E isto é uma das coisas mais abissais na série. Topaipai tinha morto um amigo, era um “inimigo”, mas seria mesmo, ou “só no papel”? É que Sangoku não faz o mínimo esforço para o impedir, e dorme descansado como um justo quando Topaipai sobe à Torre Sagrada. Uma interpretação possível é dizer que ele sabe, pela própria natureza do ensinamento, que Topaipai não o pode assimilar. Mas uma interpretação mais coincidente com toda a série, é dizer que Sangoku deseja efectivamente que Topaipai beba da Água Sagrada e se torne mais forte e melhor. De certa forma, Topaipai transformou-se num “amigo”. Apesar de estarem em campos diferentes, e de Sangoku estar também a vingar a morte do guardião, ao mesmo tempo encara Topaipai como um grande amigo, como se de um velho conhecido se tratasse.

 

Quando Topaipai volta da Torre, Sangoku deixa-se bater, e depois diz “já vi o que fizeste, surpreendeste-me, agora é a minha vez de te mostrar do que sou capaz”

 

Ou seja, ele protege o gato dando-lhe a ideia de que realmente as suas capacidades estão melhoradas, mas sobretudo, obteve agora a ocasião de retaliar, mostrando o que sabe fazer, sem qualquer laivo de agressividade interior, de ódio, etc. É tudo uma brincadeira, um retorno da violência causada, mas sem mágoa, sem dor, ao mesmo tempo que respeita os sentimentos do filho do guardião e diz que vai vingar o seu pai. É simplesmente genial.

 

Sangoku acaba por vencer definitivamente Topaipai, não porque se tornou mais forte do que ele, mas porque é capaz de lhe devolver as armas (a granada, e a violência) sem se deixar envolver por ela. O grande truque de Topaipai, afinal, era dominar as pessoas pelo medo, ou pela violência que criava à sua volta com a sua própria violência. Vendo esse medo, ou essa violência, descobria toda a fraqueza, a falsidade nas pessoas, que lhe permitia depois vencê-las com a sua verdade e continuar a alimentar a sua ideia de que o mundo era sem sentido e habitado por seres spineless e sem valor.

 

Manter a alegria, o amor, a jovialidade, todos os valores e a beleza do mundo, face a este ar carrancudo, rezingão e autoritário, é a melhor receita para a derrota dessas barreiras, para o romper do ciclo vicioso que a pessoa pôs entre si e o mundo. É mostrar-lhe que afinal a alegria e o amor existem. Para isso, o “salvador” tem que ser como Deus (o gato?) e perceber, por detrás da violência, todo o bem que existe, por trás da gruta e da escuridão, o dia e o sol, que a envolvem e sem a qual não existiria. Assim se abre uma porta para que o outro possa sair, e para que nós possamos nem sequer entrar, mas servir, se ele assim quiser, de esteira, ou de caminho, para que ele siga em direcção à verdade, à felicidade, neste caso à comunhão, na alegria, com os outros.